“Atitudes repulsivas” da esposa ferem a honra do marido? Histórias de morte

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Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br
Mesmo sendo vítima, população questionava se uma
mulher assassinada em 1951 não teria dado razão para
o ex-esposo cometer o crime

Casos de assassinatos de mulheres por parceiros íntimos provocaram comoção nacional no último ano, dada a brutalidade dos atos que vitimaram meninas e mulheres de todos os estratos sociais. Antônia Sousa, ajudante geral, tinha 34 anos quando foi morta pelo companheiro com vinte facadas na noite de Natal. O crime aconteceu na presença do filho da vítima, em Leme, estado de São Paulo (G1, 2020). Viviane Arronenzi, juíza de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tinha 45 anos, e foi morta a facadas pelo ex-companheiro. O crime aconteceu em uma avenida da Barra da Tijuca, na capital carioca, na frente das três filhas do casal (ESTADO DE MINAS, 2020).

Em contraste, uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF) provocou protestos do movimento de mulheres e espanto dos especialistas da área. Sobre a absolvição pelo tribunal do júri, de um acusado confesso de tentativa de feminicídio amparado na “tese da legítima defesa da honra”, os ministros acataram a referida tese com base na “soberania dos vereditos”, entendendo que a decisão do júri não pode ser modificada. O caso foi em Nova Era, MG (UOL, 2020). A questão levantou importante alerta sobre o retorno da utilização do citado argumento para absolvição de homens que matam suas companheiras.

Por outro lado, o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), desqualificou a tese utilizada pela defesa de um réu que teria estrangulado sua esposa em uma festa no estado de Santa Catarina. O argumento utilizado para fundamentar a absolvição sumária considerou que o acusado teria assassinado a mulher em virtude de ela ter manifestado um comportamento considerado “repulsivo”, provocando com isso, seu marido. Situação que justificaria o reconhecimento da legítima defesa da honra. “[…] No recurso dirigido ao STJ, a defesa alegou que as atitudes da vítima ao longo de muitos anos causaram danos graves à honra do marido, deixando- -o abalado psicologicamente e fazendo despertar a impulsividade e a violenta emoção que levaram à prática de ‘atos primitivos’”.

Em resposta, o ministro pontuou o seguinte: “Embora seja livre a tribuna e desimpedido o uso de argumentos defensivos, surpreende saber que ainda se postula, em pleno ano de 2019, a absolvição sumária de quem retira a vida da companheira por, supostamente, ter sua honra ferida pelo comportamento da vítima. Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte” (SEDEP, 2020).

Em julho de 2020, durante a pandemia, um estudo indicou que houve diminuição dos registros associados à violência contra as mulheres e de requerimentos de medida protetiva de urgência, ao passo que, houve aumento dos feminicídios no país (FBSP, 2020).

Apesar da violência doméstica ser amplamente discutida pela comunidade científica e estar presente no cotidiano das brasileiras – seja porque encontram-se nessa condição ou por conhecerem outras mulheres que sofrem com o problema –, […] não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que apontem para a magnitude deste fenômeno” (BRASIL, 2011, p.16).

Quase uma década após esta constatação, infere-se que não houve nenhuma mudança. No Brasil, as mortes por agressão às mulheres só passaram a ser analisadas a partir das informações das Secretarias de Segurança Pública de alguns estados, no ano de 2011 (FBSP, 2013). No contexto atual, sem a consolidação do Sistema Nacional de Dados e Estatísticas, previsto na lei Maria da Penha e reafirmada como prioridade da Política Nacional de Enfrentamento, a produção e sistematização de informações sobre a violência doméstica permanece insipiente, gerando, a partir do que é possível verificar, relativos desencontros e inconsistências. Além disso, essas limitações expressam o alcance da desigualdade de gênero, quando encontra importante resistência dos governos (municípios, estados e união) no que tange à destinação orçamentária para as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Transcorridos cinco anos da promulgação da Lei do Feminicídio, muitos sistemas ainda não estão adaptados para a realização de levantamentos desta natureza.

Pelas lacunas decorrentes desta condição, há divergências consideráveis de dados disponibilizados pelos setores diretamente associados ao acolhimento das mulheres: a saúde, a segurança pública e a justiça. Esta realidade revela a dimensão do desafio imposto aos formuladores de políticas públicas.

Referências: Imagem – Jornal Pioneiro 10/ Reprodução; https://www. em.com.br/app/noticia/nacional/2020/12/25/interna_nacional,1223735/juiza-morta-pelo-ex-na-frente-das-filhas-no-rio-dispensou-escolta.shtmlhttps://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/12/29/corpo-de-mulher-assassinada-pelo-marido-com-20-facadas-em-leme-sao-paulo-e-sepultado-no-ceara.ghtml / https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/09/30/ stf-acata-absolvicao-por-defesa-da-honra.htm / https://www12.senado.leg.br › entenda-a-violencia › pdfs

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