Psiu. Silêncio. Mira. Apruma a mira da pupila e olha com olhos de ver e sonhar. De madrugada, minha Coroaci é tão bonita quanto uma flor brotando da treva. Há um limo de memória aureolando tudo o que me cerca e ao mesmo tempo me liberta. Esparsos pensamentos escrevo num velho caderno como ao correr da pena como o mais antigo dos escribas. Escrever não é fácil nem difícil. É apenas uma questão de hábito como ir ao saudoso cine Brasil – lá em Coroaci, de propriedade do também saudoso Cosme Carvalhais, na única sessão, pagar, entrar, comprar um saco de pipoca e beijar os lábios da amada com gosto de sal e manteiga barata.
São quatro da madrugada. Atravesso a casa, pé ante pé, sem ousar barulho, abro a porteira da fazenda Santa Maria como quem vai saltar de um precipício. Felizmente, meu santo é forte, e aparentemente não divido nenhum perigo à vista. A cidade dorme, a multidão descansa. Em torno de mim, tudo se faz silêncio. E amarelada luz do poste da estrada desenha um halo sobre a minha cabeça feito eu fosse um santo pintado num vitral da igreja de Nossa Senhora Sant’Anna. A vida é isso, eu não me engano. Tecida desses momentos em que você está a sós consigo mesmo. Todo o resto nada importa.
Entanto, mesmo o que nada importa tem lá a sua insignificante importância, sua simbologia e seu particular significado. Ergo meus olhos, que tanto carecem de luz, rutilâncias e claridade, para o céu ainda neblinado e descaradamente flerto com a solitária estrelinha que me pisca o olho feito uma garota de cabaré lá da Vila do Reino. Como é bom viver, como é ruim viver, penso cá com os meus botões. Já fecharam as portas do derradeiro bar [do saudoso Lêgo], na praça José Olegário dos Reis. As portas vivem se fechando para mim e meus sonhares e quando isso acontece, eu simplesmente tento, sem sucesso, arrombá-las.
Pois é, amanhã tem dentista e pensar no dentista – Seu Severino – me devolve bruscamente à realidade. E a realidade balança, oscila entre dois polos: a realidade é não e não é. Por vezes, penso que a realidade está no que escrevo. Que grande besteira. Besteira de um coroaciense ousar pensar que a realidade se escreve ao correr da pena num velho caderno, cheio de rabiscos e rascunhos, como se a realidade não passasse de um Frankenstein criado e remendado de palavras e borrões de tinta. Estou com sono em pleno amanhecer e certamente não verei o sol nascer. Pior pra mim.
Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni) e colunista do Jornal Diário Tribuna.