E o homem se fez

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José Carlos Freire
Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

“A maçã no escuro” é o quarto romance de Clarice Lispector, escrito na década de 1950, mas publicado apenas em 1961. É o mais longo da autora e se diferencia dos demais também por apresentar personagens com histórias variadas e complexas. A narrativa acompanha o protagonista Martim em fuga após ter cometido um crime. Escondido inicialmente em um hotel de área afastada, decide se embrenhar por campos sem fim com medo de ser pego. Termina por encontrar um sítio onde vivem a proprietária Vitória, sua prima Ermelinda e dois empregados. Ali trabalha em troca de comida e abrigo, sem reclamar. Crime, fuga, mentiras, suspense. Essa trama, que muito recorda os romances policiais, é transformada por Clarice Lispector em profunda obra filosófica pelo seu costumeiro trabalho de mergulho nos personagens.

Martim só quer seguir a rotina, obedecendo às ordens de Vitória, como se precisasse cumprir uma purificação, anulando-se para encontrar a redenção. Ocorre que ninguém controla os rumos de sua própria existência, afinal, como diz a narradora: “o que tem que ser, tem muita força”. É o que acontece, por exemplo, com Ermelinda quando nota o seu amor por Martim: “E somente então percebeu que agora era tarde demais, que só poderia amá-lo. Dolorosamente, altivamente, perdera para sempre a possibilidade de resolver. (…) Um segundo antes ainda poderia não amá-lo. Mas agora, suavemente, vaidosamente: nunca mais”. O imponderável se mostra com toda força; a previsibilidade se evapora. Não é assim com todos nós?

Volto ao protagonista. Embora quisesse apenas a calma de não pensar, cumprindo o ofício, Martim não se dá conta de que, desde o início de sua fuga, há um processo que se desenrola sem o seu controle. Como se ele viesse do barro e aos poucos fosse ganhando vida, lentamente. Ainda no hotel, Martim percebera “o silêncio e dentro do silêncio sua própria presença”. Já na fuga para o campo, em plena solidão, ele se descobrirá pensando. A linguagem será o próximo passo: fala com as pedras, como se iniciasse um mundo do qual seria o criador. Um mundo novo que ele ainda não sabia. Será assim também no sítio. Martim não tem como evitar que no seu entorno as coisas ocorram. As pessoas interferem, tudo interfere. Ele muda, como se “estivesse enfim aprendendo que a noite desce e que o dia renasce e que depois a noite vem”. A natureza parecia lhe dizer: “Cresça!”. E ele obedecia.

Mas e o crime de Martim? O leitor e a leitora têm plena razão ao perguntar. Afinal, não era disso que se tratava a história? Sim, mas é preciso recordar que nos textos de Clarice os fatos são janelas pelas quais os personagens percebem outras coisas e nós leitores somos os expectadores privilegiados. O crime de Martim será revelado no tempo certo, fechando o arco narrativo do protagonista. Mas ao longo das páginas vamos nos desapegando dessa curiosidade acerca do que se deu. Deixamos de focar a figura de Martim como criminoso, embora o seja confessadamente, e passamos a acompanhar seu caminho de autodescoberta. Martim é um de nós. Em certo momento, não por acaso no alto de uma encosta com vista ampla, ele emergirá como homem: “Numa sensação agonizante, ele se sentiu uma pessoa” e, então, “pela primeira vez estava presente no momento em que acontece o que acontece”.

O que se segue é a ânsia de reconstrução do próprio mundo. Vontade de viver, poderíamos dizer. Mas ele já não vivia? Sim! Mas, antes do crime – o evento epifânico – não percebia a própria vida e essa era a grande descoberta que agora lhe dava uma alegria inquieta, uma pressa de terminar o ato da criação de si. Como se, sendo Deus a criar o mundo, estivesse apenas no terceiro dia. Havia muito ainda que se fazer. Era essa sua missão heroica.

Estamos aqui ainda na segunda parte do romance. Mas me parece suficiente para que o leitor e a leitora se animem a percorrer suas quase quatrocentas páginas – valerá a pena. A terceira parte tem exatamente o título do livro. A propósito, a simbologia bíblica não é acidental. Elementos como a “maçã”, “escuro/ luz”, “jardim” e tantos outros estão amarrados naquilo que Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, chamou de alegoria da criação. A maçã no escuro apresenta, de maneira invertida, o ato da criação: não o de Deus que cria o homem, mas o do homem que cria o mundo e a si mesmo. Em sua rebelião, não aceita mais ser criatura: quer se fazer. Martim era um homem antes do crime, mas propriamente se fará autoconsciente de si depois de longo e penoso processo.

O caminho de Martim é similar ao de cada um e cada uma de nós. Um grande evento na vida, um grande erro, formas diversas de crimes que cometemos contra nós e contra outras pessoas, tantos momentos que podemos entrever em nossa trajetória a partir dos quais redimensionamos tudo – ou, pelo menos, poderíamos ter redimensionado. Fácil? De forma alguma. Ao contrário, difícil e doloroso: “Um homem no escuro era um criador (…). Respirou devagar e com cuidado: crescer dói. Respirou muito devagar e com cuidado. Tornar-se dói”.

Mas talvez o leitor e a leitora considerem que não haja grandes eventos nas suas biografias que pudessem provocar uma tal busca de si mesmos. Eu lhes pergunto: Que evento é maior do que a vida mesma? Que coisa absurdamente fascinante é essa de acordarmos pela manhã com um dia inteiro para viver? Nova chance, nova oportunidade a nos empurrar para além da superfície da existência. Portanto, é sempre tempo de nos criarmos. Temos coragem? Oxalá!

Ilustração: Vinícius Figueiredo. Sugestão de leitura: “A maçã no escuro” (1961), de Clarice Lispector. Publicado pela Ed. Francisco Alves. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com.

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