
Delegado Geral de Polícia – Aposentado. Prof. de Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Ciência das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Especialização em Combate à corrupção, antiterrorismo e combate ao crime organizado pela Universidade de Salamanca – Espanha. Advogado. Autor de livros
RESUMO: O juiz das garantias, previsto na Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), representa um marco no processo penal brasileiro ao assegurar a imparcialidade do julgamento e a efetivação dos direitos fundamentais do investigado. Este artigo analisa a gênese normativa do instituto, a suspensão temporária de sua implementação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e sua aplicação no direito comparado. São abordadas a competência processual do juiz das garantias, a cessação de suas funções após o recebimento da denúncia ou queixa, e sua recente instalação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A análise contextual revela as tensões entre garantismo, eficiência da persecução penal e necessidade de modernização da justiça criminal. Nas reflexões finais, destaca-se o caráter épico da figura do juiz das garantias, como guardião da dignidade humana e da imparcialidade judicial, em face das tentações inquisitivas que assombram o processo penal contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Juiz das garantias; Pacote Anticrime; imparcialidade judicial; processo penal acusatório; direitos fundamentais; STF; TJMG; direito comparado; devido processo legal.
INTRODUÇÃO
Todo juiz, em sua essência, é juiz das garantias, pois lhe compete zelar pela imparcialidade e pela legalidade do processo. Todavia, o que a lei buscou consagrar foi a necessidade de evitar o estado anímico de um magistrado que, desde o alvorecer da investigação, teve contato direto com os fatos ainda brutos, acompanhou as primeiras provas surgidas no trepidar das explosões sociais, decidiu sobre medidas cautelares em meio ao clamor público, e, em casos de grande repercussão, sentiu o pulsar frenético das mídias sociais. Esse juiz presenciou, ainda que de forma indireta, o embate de acusações e defesas ideologicamente carregadas, reflexo de uma polarização romântica e ilusória que permeia o tecido social contemporâneo. É verdade que o magistrado incumbido de processar, instruir e julgar também terá conhecimento mediato desses fatos. Entretanto, quando as tempestades midiáticas se dissiparem, quando a sociedade voltar sua atenção para novos e mais graves acontecimentos, este juiz da instrução e julgamento estará mais equidistante das pressões populares, mais protegido contra as influências externas e, assim, mais apto a decidir com serenidade, razão e justiça.
O instituto do juiz das garantias foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 13.964, de 2019, o denominado Pacote Anticrime, que promoveu uma das mais profundas reformas penais e processuais da história recente do país. Regulamentado nos artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal (CPP), o juiz das garantias emerge como peça fundamental do processo penal acusatório, vedando a iniciativa probatória do magistrado e assegurando que o julgamento se faça por autoridade isenta de vínculos com a fase investigativa.
Todavia, sua implementação foi suspensa liminarmente pelo Ministro Luiz Fux, relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionaram o novo instituto, sob o argumento da necessidade de estudos mais profundos sobre os impactos administrativos e estruturais no Poder Judiciário. A controvérsia permanece em debate, refletindo o embate entre garantismo constitucional e pragmatismo institucional.
Ao estabelecer a separação entre juiz da investigação e juiz do julgamento, o legislador buscou reforçar o princípio da imparcialidade, resguardando a justiça de qualquer contaminação cognitiva advinda da atuação pré-processual. O juiz das garantias, portanto, não apenas tutela direitos fundamentais, mas simboliza a consolidação de um processo penal moderno, democrático e alinhado às melhores práticas internacionais.
JUIZ DAS GARANTIAS NO DIREITO COMPARADO
O modelo do juiz das garantias, embora inovador no Brasil, não constitui criação autóctone. Diversos países já adotam a separação entre magistrado da investigação e magistrado do julgamento. Portugal, França e Itália, na Europa, e Chile, Colômbia e Estados Unidos, nas Américas, possuem sistemas semelhantes, destinados a mitigar o risco de parcialidade judicial.
O site Migalhas aponta que, em Portugal, conforme o artigo 17º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução é responsável por conduzir a instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer funções jurisdicionais até a remessa do processo para julgamento. Já no Brasil, a Lei nº 13.964/2019 instituiu o juiz das garantias com idêntica ratio: distinguir a função do magistrado que controla a legalidade da investigação daquele que julgará a ação penal.
No julgamento da ADI 6298/DF, o Ministro Dias Toffoli destacou que o instituto promove uma “clara diferenciação entre a fase pré-processual (investigativa) e a fase processual (julgamento)”, fortalecendo a imparcialidade do processo penal.
COMPETÊNCIA PROCESSUAL DO JUIZ DAS GARANTIAS
O artigo 3º-B do CPP delimitou, com precisão, a competência do juiz das garantias, que abrange desde o controle da legalidade da investigação até a proteção dos direitos fundamentais do investigado. Compete-lhe, entre outras atribuições: receber comunicação de prisão em flagrante, decidir sobre medidas cautelares, autorizar interceptações e quebras de sigilo, zelar pela dignidade da pessoa presa, determinar o trancamento do inquérito quando infundado, e decidir sobre acordos como a colaboração premiada e o não oferecimento da denúncia.
A audiência de custódia, a ser realizada em até 24 horas, constitui um dos pontos centrais de sua atuação, garantindo o controle judicial imediato da legalidade da prisão. Ademais, o instituto prevê mecanismos que impedem o prolongamento indevido da investigação, impondo prazos e limites claros ao Estado-acusador.
CESSAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO JUIZ DAS GARANTIAS
Nos termos do artigo 3º-C do CPP, a competência do juiz das garantias cessa com o recebimento da denúncia ou queixa-crime. A partir desse marco, assume o juiz da instrução e julgamento, incumbido de conduzir a fase processual propriamente dita.
As decisões do juiz das garantias não vinculam o magistrado julgador, que deve reexaminar, no prazo de 10 dias, as medidas cautelares ainda em vigor. Essa cisão assegura o distanciamento necessário entre a fase investigativa e o julgamento, preservando a imparcialidade do magistrado sentenciante.
CRIAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em consonância com decisão do STF que reconheceu a constitucionalidade do instituto, implantou, por meio da Resolução nº 1.108/2025, a Central das Garantias na Comarca de Belo Horizonte. Foram criadas a 1ª e a 2ª Varas das Garantias, destinadas exclusivamente à análise de medidas cautelares, audiências de custódia, autorizações de interceptações e demais atos de controle da legalidade da investigação criminal.
A Resolução nº 1.109/2025 também prevê a possibilidade de expansão do modelo para comarcas do interior, mediante racionalização dos recursos orçamentários e humanos, consolidando, assim, um novo paradigma de justiça criminal em Minas Gerais.
ANÁLISE CONTEXTUAL DO TEMA
A criação do juiz das garantias insere-se em um movimento global de fortalecimento do devido processo legal e de mitigação das práticas inquisitivas ainda presentes no processo penal brasileiro. Trata-se de uma resposta legislativa à necessidade de reforçar o sistema acusatório previsto no artigo 129, I, da Constituição Federal, reafirmando a separação entre acusação, defesa e jurisdição.
Contudo, o instituto enfrenta resistências institucionais, sobretudo em razão das dificuldades administrativas, do impacto financeiro e da necessidade de adaptação da estrutura judiciária. A crítica de setores do Judiciário e do Ministério Público aponta riscos de fragmentação e morosidade. Em contrapartida, defensores sustentam que o instituto representa avanço civilizatório, capaz de assegurar julgamentos mais justos e menos suscetíveis a vieses cognitivos.
A realidade é que o juiz das garantias tensiona a tradição judicial brasileira e desafia os poderes constituídos a modernizar a persecução penal, equilibrando eficiência estatal e proteção de direitos fundamentais.
REFLEXÕES FINAIS
O juiz das garantias não é apenas uma inovação normativa; é a materialização de um anseio constitucional por uma justiça mais íntegra, imparcial e comprometida com a dignidade da pessoa humana. Sua gênese, inscrita na Lei nº 13.964/2019, transcende o caráter meramente procedimental: trata-se de uma ruptura com práticas inquisitivas que, por séculos, obscureceram o processo penal brasileiro.
Ao separar o magistrado que acompanha a investigação daquele que julga a causa, o legislador consagrou a imparcialidade como pilar do devido processo legal, garantindo que a verdade processual não seja contaminada pela suspeita, pelo pré-julgamento ou pela tentação do arbítrio. Nesse contexto, o juiz das garantias ergue-se como guardião da legalidade, fiscal da lisura investigativa e defensor dos direitos fundamentais contra o peso esmagador do Estado-acusador.
É certo que sua implementação encontrou resistências, seja por entraves logísticos, seja por receios institucionais. Todavia, cada obstáculo revela a grandeza do instituto: ele não se curva às facilidades do pragmatismo, mas exige do Judiciário coragem, criatividade e compromisso com a Constituição.
Assim, o juiz das garantias deve ser compreendido como conquista civilizatória, marco de um processo penal que não teme revisitar suas próprias sombras para se tornar mais humano e justo. Ele é, em essência, o sopro épico que reafirma que a liberdade só floresce quando a justiça se veste de imparcialidade.
Que o Brasil, ao abraçar plenamente essa figura, não apenas reforme suas leis, mas transforme sua cultura jurídica, para que cada julgamento seja o reflexo mais límpido da verdade, da justiça e da democracia. Portanto, o juiz das garantias não é apenas uma figura processual. É o guardião da imparcialidade, o vigia da legalidade e o defensor dos direitos fundamentais diante da força avassaladora do Estado. Sua criação simboliza o triunfo da razão constitucional sobre os resquícios inquisitivos que ainda permeiam a justiça criminal brasileira.
A implementação plena do instituto exigirá coragem política, responsabilidade institucional e compromisso ético com a democracia. Mais que um desafio logístico, trata-se de uma escolha civilizatória: garantir que ninguém seja julgado por quem já o condenou no íntimo, que a justiça não se confunda com o arbítrio, e que o processo penal brasileiro se erga como monumento à imparcialidade judicial.
Assim, o juiz das garantias deve ser visto não como entrave, mas como avanço, não como obstáculo, mas como conquista. Sua existência ecoa como um hino épico à dignidade da pessoa humana, iluminando o caminho de um processo penal mais justo, equilibrado e fiel ao ideal democrático.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
FUX, Luiz. Decisão liminar na ADI 6298/DF, STF.
MIGALHAS. O juiz das garantias no direito comparado. Disponível em: https://www.migalhas.com.br.
Supremo Tribunal Federal. ADI 6298/DF, Rel. Min. Dias Toffoli.
Supremo Tribunal Federal. ADIs 6299, 6300 e 6305.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Resoluções nº 1.108/2025 e 1.109/2025.
TOFFOLI, Dias. Voto na ADI 6298/DF, STF










