Democracia em crise: desde Aécio à recondução de Lula à presidência do Brasil

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Em 2014, pesquisas das principais agências do país indicavam Aécio Neves (PSDB) à frente da então presidente Dilma Rousseff (PT) na corrida presidencial do pleito eleitoral daquele ano. Nas urnas, o resultado foi diferente. Dilma foi reeleita presidente do Brasil e Aécio, inconformado, contestou o resultado junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sem êxito, o confronto partiu para entraves via Congresso. Sob o argumento das “pedaladas fiscais”, que atualmente ganhou nova conotação, o presidente da Câmara dos Deputados admitiu o processo de impeachment que levou à queda da presidente reeleita. Seu vice, Michel Temer (MDB), assumiu a presidência até a posse, em 2019, de Jair Messias Bolsonaro, candidato eleito em 2018.

Desde a contestação de Aécio, o país passa por uma profunda crise política e moral, que levou à prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por inúmeras acusações. Sérgio Moro, até então exaltado por muitos pela competência na condução do processo no caso “Lava Jato”, foi o juiz que condenou Lula, inviabilizando sua candidatura em 2018. Logo em seguida, Moro assumiu o Ministério da Justiça do governo do recém-empossado Jair Bolsonaro, opositor de Fernando Haddad (PT), indicado por Lula para assumir a disputa, já que fora impedido.

Fora da prisão que o limitou a disputar as eleições presidenciais de 2018, e 2022, Lula vence Bolsonaro nas urnas e será reconduzido à chefia do executivo nacional a partir de 1º de janeiro de 2023. A mudança tende a marcar o retorno do presidencialismo de coalizão, que teve sua lógica rompida pela natureza da gestão do atual presidente. As negociações entre a habitual diversidade de grupos ideológicos, próprias da política brasileira, deram lugar a posicionamentos que encontram referência na extrema direita internacional.

Entre os dois candidatos que disputaram o 2º turno da eleição para presidente do país, se destacam não apenas diferenças ideológicas simplificadas à defesa da maior ou menor intervenção do Estado na economia. Trata-se, especialmente, de tratar ou perpetuar abalos estruturais em pilares importantes à manutenção da jovem democracia do país, capazes de definir os rumos do Brasil para as gerações futuras.

A eleição 2022 apresentou uma sucessão de episódios inéditos que, certamente, ocuparão lugar de destaque na história, dentre outros, destaco: a) A laicidade do Estado sofreu golpes flagrantes – A religião (cristianismo) nunca pautou em tão alto grau a política nacional; lideranças das igrejas absorveram discursos político-ideológicos, passando a pressionar fiéis a definirem votos para determinada candidatura; b) Discursos de ódio – de ambos os lados – ocuparam as redes sociais por meio do protagonismo assumido pelas pautas dos costumes; c) 1ª chapa 100% feminina foi eleita para o governo do estado de Pernambuco, onde a disputa foi entre duas mulheres (Raquel Lyra, do PSDB e Marília Arraes, do Solidariedade); d) Foi a eleição onde houve o maior número de votantes da história do país;

e) Em Minas Gerais, o jovem youtuber Nicolas Ferreira (PL), foi o candidato a deputado federal mais votado do país, com cerca de um milhão e meio de votos e o mais votado da história de Minas. Ele defende a direita conservadora mineira. De outro lado, Guilherme Boulos (PSOL), líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) de São Paulo, foi o mais bem votado para deputado federal no maior colégio eleitoral do país, com 1 milhão de votos. Boulos representa a esquerda contemporânea. f) A Ministra Carmen Lúcia do Supremo Tribunal Federal (STF), foi ferozmente agredida pelo ex-deputado federal Roberto Jeferson por meio da publicação de um vídeo com conteúdo misógino. O ofensor cumpria prisão domiciliar, mas, contava com um arsenal em casa. O mesmo usado para resistir à ordem de retorno à prisão comum em cumprimento por agentes da Polícia Federal. Jeferson arremessou granadas e efetuou cerca de 50 disparos de fuzil na direção das viaturas policiais. Dois agentes se feriram sem gravidade.

g) Em um dos debates presidenciais, promovido pela Rede Globo, o Brasil conheceu o candidato Padre Kelmon (PTB) – figura caricata, nomeado pela candidata Soraia Thronicke (União Brasil) como padre de festa junina; h) Às vésperas das eleições de 2º turno, a deputada reeleita Carla Zambelli, com arma em punho, perseguiu a pé, pelas ruas de São Paulo, um homem que a teria empurrado ao chão. Ela exigiu um pedido de desculpas. O fato foi registrado em vídeo e divulgado nas redes sociais, causando grande repercussão e questionamentos sobre a flexibilização do acesso a armas de fogo pela população comum na categoria dos “CACs” – Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores. i) Minas elegeu Célia Xakriabá, a 1ª mulher indígena e Duda Salabert, a 1ª mulher trans da história mineira para deputadas federais.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), comandado pelo ministro Alexandre de Moraes, foi um dos protagonistas nessas eleições. Tendo sido, por um lado, gravemente questionado sobre suas decisões na tentativa de frear o avanço das fake news (mentiras/desinformação), por outro, foi considerado pela comunidade internacional, um expoente para a garantia da lisura do processo democrático brasileiro.

A campanha de Bolsonaro posicionou-se no ataque da campanha oponente levantando a pauta dos costumes enquanto investia na descredibilização da figura do petista, associando-o à corrupção. Destacou o lema: Deus, Pátria, Família e Liberdade, com a promessa de reforçar a matriz conservadora em curso e com a exposição de alianças emblemáticas, como exemplo, com o até então desafeto e eleito senador pelo Paraná, Sérgio Moro. De outro lado, a campanha de Lula rebate, assumindo um discurso desvinculando sua nova proposta de gestão da centralidade do Partido dos Trabalhadores (PT). Alega que não será um governo do PT, mas, de colaboração de outros agentes político-partidários alinhados também ao centro e à centro-direita do país.

Dias antes do domingo de 2º turno, a campanha de Bolsonaro reclamou a não inserção de suas propagandas em rádios, especialmente da região Nordeste. Questionamento que foi descartado pelo TSE em razão de não ser competência do órgão a fiscalização de inserções e sim, atribuição das respectivas campanhas que devem informar equívocos em tempo hábil para correção. As rádios citadas na denúncia alegaram ter provas de que as inserções encaminhadas foram feitas devidamente.

De outro lado, a campanha de Lula reclamou do uso da máquina pública em favor do atual presidente. O governo teria definido uma série de medidas populistas e eleitoreiras no período pré-eleitoral, dentre as quais, isenção de impostos para a redução do preço da gasolina, e liberação do Auxílio Brasil com a possibilidade de empréstimos bancários associados ao benefício. Incluso no chamado “pacote de bondades”, esta última medida foi criticada por vincular-se diretamente ao endividamento da população mais pobre.

Conforme já exposto, a disputa do executivo nacional foi vencida pelo ex-presidente Lula, que obteve 50,9% dos votos (mais de 60 milhões), derrotando o atual presidente, Jair Bolsonaro, que obteve 49,1% (mais de 58 milhões de votos). A disputa foi a mais apertada da história. Bolsonaro venceu na maioria dos estados da federação, mas, Lula conseguiu mais votos por ter conquistado maioria expressiva na votação da região nordeste e do estado de Minas, o 2º maior colégio eleitoral do país. Até quase 70% da apuração dos votos pelo TSE, Bolsonaro ficou na frente. A partir de então, Lula assumiu a dianteira.

Ocorre que, nas regiões onde Bolsonaro conquistou mais votos, como o Sul, a apuração costuma ser mais rápida, devido à distância entre municípios. Já no Nordeste, onde Lula dominou, os municípios são mais distantes do ponto de apuração. No 1º turno a vantagem de Lula era de 6 milhões de votos. No 2º turno, Bolsonaro cresceu mais, conseguiu mais 7 milhões de votos. Lula, apenas 3 milhões. Mas, o suficiente para vencer a eleição. Bolsonaro foi o 1º presidente do Brasil em exercício, que tendo se candidatado, não se reelegeu. Oposto do que ocorreu com Fernando Henrique Cardoso (1994-1998; 1999-2002); Lula (2003-2006; 2007-2010); e Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2018/ impeachment em 2016).

Enquanto Líderes mundiais se apressaram para cumprimentar o presidente eleito em reconhecimento à legitimidade do processo eleitoral brasileiro, o atual presidente, derrotado nas urnas, quebrou a liturgia. Bolsonaro não fez a tradicional ligação para o adversário vencedor, o cumprimentando pela vitória e não fez um pronunciamento oficial logo após o resultado. O que ocorreu apenas 44 horas depois da apuração, quando o país já estava repleto de bloqueios em estradas feitos por apoiadores do presidente, inconformados com o resultado das urnas e mobilizados em torno de uma suposta fraude eleitoral.

No seu discurso, o presidente agradeceu os mais de 58 milhões de votos recebidos e ressaltou a ação dos movimentos populares em razão do processo eleitoral que considerou injusto. Destacou que respeitaria a constituição, dando lugar de fala ao Ministro Ciro Nogueira, que seria o responsável pela transição do governo para a equipe do presidente eleito. Desde o primeiro dia pós eleição a democracia brasileira tem sido colocada em risco pela contestação de um processo eleitoral reconhecidamente legítimo. Um aspecto que destaca a divisão do país em blocos.

Dentre os vencedores, os que não são de esquerda, mas estão satisfeitos por terem decidido romper com o governo conservador alinhado às ideias da extrema direita mundial que põe sob ameaça, a democracia brasileira; e os que são de esquerda ou progressistas, que veem nova chance de conquistas para as classes menos favorecidas do país, pautando a redução das desigualdades.

Dentre os derrotados, aqueles que, mesmo descontentes, reconhecem a legitimidade do processo eleitoral e torcem para que o país dê certo; aqueles que, inconformados, absorvem inverdades, justificando a derrota por fraudes alinhadas previamente com o judiciário; e aqueles que, além de associarem a derrota do seu candidato a fraudes, ocupam vias públicas reivindicando intervenção federal. Até então, as barreiras que, aos poucos, têm sido desmobilizadas, causaram cancelamento de voos, problema no abastecimento de alimentos e complicação de acesso de pessoas doentes em deslocamento para unidades de saúde.

O que se extrai desse cenário é que até 1º de janeiro de 2023, data da posse presidencial, muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte. Afinal, a correlação de forças políticas diametralmente opostas ocupou papel central no momento pós-eleições. Tensionado pelos sinais ambíguos lançados pelo presidente em exercício, a situação favorece a inflamação de grupos mais extremistas, o que coloca em risco a segurança e o bem-estar das demais pessoas.

Certo é que Lula enfrentará barreiras importantes, uma vez que os candidatos eleitos destacarão um Congresso considerado ainda mais conservador que o anterior. Por outro lado, no campo internacional, líderes mundiais reconheceram a importância de Lula para o retorno dos acordos diplomáticos que envolvem cooperação e apoio de recursos ao país, especialmente, com referência à agenda climática, alvo de preocupação tanto de países como a Noruega, quanto, dos Estados Unidos.

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