Quando morrem os grandes

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

É verdade que em todos os anos perdemos pessoas importantes na cultura brasileira. Não digo “famosos” porque esse termo costuma restringir o foco a quem ganha destaque nas mídias e, não poucas vezes, leva-nos a confundir fama com relevância artística. Há muitos não famosos que são grandes e muitos famosos que ainda precisariam caminhar muito em seu ofício artístico.

O ano de 2022, no entanto, mostrou-se um tanto atípico quanto às perdas no campo cultural. Atribuo isso a dois fatores fundamentais: primeiro, foi o ano no qual, de fato, retomamos a vida no país após a pandemia e o mundo das artes começou a girar novamente. Haviam sido importantes as famosas “lives”, mas no final de 2021 já era geral o desejo de experiência mais concretas, de ir ao teatro, ao cinema, a um espetáculo, a um show. As notícias que chegavam, por conhecidos de locais diversos e pelas redes, é que a vida cultural estava, de novo, retomando o vigor. Nesse sentido, a perda de artistas parece ter nos impactado mais, porque nos tocou mais fundo.

O segundo motivo é que foi um ano difícil – e bota difícil nisso. Crise econômica, os efeitos da pandemia e um governo brasileiro que nos provocou o desespero pelo conjunto de irresponsabilidades e pela imensa distância do que se espera de um agente público. Por se ter colocado desde o início contra a arte e os artistas – salvo alguns que se tornaram apoiadores apaixonados do seu projeto de desmanche do país – o governo anterior levou a quem preza pela importância do campo cultural para a sociedade à beira de um ataque de nervos. Por isso também a morte de artistas parece ter nos atingido de modo mais forte.

Alguns exemplos: em janeiro de 2022 perdíamos a cantora Elza Soares, filha de lavadeira e operário e que se tornou uma das maiores vozes de nossa história. Autenticidade e encanto exemplares. No mês seguinte morria Arnaldo Jabor, cineasta e jornalista cujas posições políticas questionáveis a partir dos anos 1990 não apagam sua importância na geração do Cinema Novo, quando jovens diretores se dedicaram a decifrar os dramas de um país que mergulhava na ditadura pós-golpe de 1964.

Em maio foi a vez de Milton Gonçalves, um extraordinário ator que atravessou gerações em marcantes papéis na TV, no teatro e no cinema. Em agosto morria Jô Soares, artista de múltiplas habilidades, amado por uns, nem tanto por outros, sobretudo em razão de sua trajetória se confundir com o avanço da televisão como meio dominante de comunicação. É inegável, no entanto, sua importância não só como humorista e apresentador, mas também como escritor e dramaturgo.

Mas foi o mês de novembro que nos sacudiu de maneira especial. No dia 9 perdíamos, pela manhã, Gal Costa, uma referência indiscutível para várias gerações. Como dizia um amigo naquele dia, é muito difícil pensar o Brasil sem nomes como Gal Costa e, inevitavelmente no futuro, outros como Gil, Caetano, Betânia, Chico etc. Essa turma se confunde com a nossa trajetória de país das últimas seis décadas. Esse amigo, como eu, ainda sente a perda de Belchior que se foi há seis anos; agora, parece que uma geração toda começa a fechar seu ciclo.

Eis que na tarde do mesmo dia morria Rolando Boldrin, figura de imenso valor na preservação da cultura brasileira e na divulgação de artistas – famosos ou não – em seus programas televisivos. Sem contar sua carreira múltipla como compositor, intérprete e ator. Falando de modo pessoal, a morte de Boldrin me tocou muito, porque cresci em um ambiente cultural caipira, o mesmo do qual ele procedia e fazia questão de enaltecer. O “Sr. Brasil”, apelido merecido, parecia alguém próximo da gente como aqueles velhos conhecidos da infância.

Um pouco recuperados do baque, eis que no dia 22 perdíamos mais duas figuras importantes: Erasmo Carlos, o “Tremendão”, e Pablo Milanés, um artista não brasileiro – referência da música cubana – muito importante para aquela geração de cantores a que me referi. Para quem busca conhecer e valorizar a cultura brasileira, entendendo-a como parte da América Latina, perder esses dois no mesmo dia foi muito difícil.

Como se não bastasse, mal começou o ano de 2023 e morria Frei Chico, conhecido e admirado por quem valoriza a cultura popular não só em Minas Gerais – foi no Vale do Jequitinhonha que ele fez suas pesquisas e desenvolveu parte importante de seus trabalhos –, mas em todo o Brasil. Tive a alegria de conhecê-lo no final dos anos 1990, quando fazia formação com os frades franciscanos, embora não tivesse, na época, dimensão da sua importância. Sua presença marcante, sua voz forte e o inconfundível vibrato. A quem ouviu Frei Chico cantando as cantigas do Vale algo de definitivo mudou na percepção da cultura popular em nosso país. Ele fazia a gente ter vontade de conhecer o Jequitinhonha. A propósito, um dos momentos ímpares do ano passado foi ver Frei Chico no programa do Boldrin, junto com Rubinho do Vale. Um encontro de grandes!

E o que fazer quando tais figuras morrem? Não há substitutos para esses que citei e tantos outros que já se foram, com maior ou menor fama. Quando morrem os grandes, ficamos com um sentimento de orfandade. Para a minha geração, essas figuras que morreram em 2022 têm a mesma idade de nossos pais, ou seja, são nossas referências artísticas.

Mas é preciso seguir. Mais que o merecido luto, grandes artistas merecem que divulguemos seus trabalhos. Como fazia o querido Boldrin que enfeitava o palco do programa com a fotografia de artistas brasileiros. Além disso, é necessário que criemos condições para que novas expressões apareçam em todas as formas artísticas. Fechado o horrendo ciclo de retrocessos que tivemos nos últimos anos, que a cultura seja novamente valorizada, que haja fomento público para a formação de artistas nas comunidades e nas escolas. A melhor maneira de honrarmos a memória dos grandes é batalhar para que a arte floresça em nosso país. A bênção, artistas que se foram!

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