Quem você leva na Van?

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

A vida é uma instigante aventura que tentamos entender a cada dia e sempre resta muito para aprender. É como uma viagem na qual somos colocados: é no transcurso, aos trancos e barrancos, que vamos nos localizando, conhecendo-nos um pouco mais a cada curva e conquistando momentos de alegria que compensam toda a labuta. É como diz Adélia Prado: “A vida é mais tempo alegre do que triste”.

Tem um elemento que a torna mais interessante: as nossas relações. Algumas já herdamos de saída: o núcleo familiar em que crescemos as pessoas que se constituem como nossas referências, nem sempre pais, nem sempre mães, mas sempre referências. Depois avançamos para outros vínculos, de colegas de estudo e trabalho a outros tantos. Há um vínculo, porém, que é especial. É a amizade.

Não por acaso, em toda a história da filosofia – que já traz na sua etimologia a noção de amizade com a sabedoria – é constante a reflexão sobre esse sentimento tão nobre. Na Grécia Antiga, berço da filosofia ocidental, já nos primeiros pensadores há um destaque para esse vínculo único entre pessoas. Toda a filosofia de Platão, por exemplo, articula-se na forma de diálogos, o que, por sua natureza, exige uma predisposição afetiva entre os debatedores. Por sinal, é o nosso olhar moderno que nos faz pensar a Academia de Platão como se fosse uma Universidade do nosso tempo, na distância abissal que é comum entre quem ensina e quem aprende. Sem a neurose da grade curricular ou da formatura, o que lá se dava era outra coisa. Era, sobretudo, o convívio com o mestre e com os companheiros de estudo.

Aristóteles, por sua vez, entendia a amizade como uma virtude fundamental. O amigo é um outro de nós, o que implica diretamente na noção de complementaridade. Ninguém é pleno sem amigos – simples assim. O mesmo vale para as escolas filosóficas como o epicurismo, talvez aquela em que a reflexão sobre a amizade tenha encontrado o ponto mais alto. Para Epicuro, de todas as coisas que a sabedoria nos oferece, a amizade é a maior delas. O que ressignifica a própria noção de filosofia, pois a busca da sabedoria teria como resultado mais efetivo a conquista da amizade.

Não será diferente ao longo de todo o pensamento filosófico futuro, a ponto de a amizade ser colocada acima do amor, aqui entendido como relação que nasce da paixão entre duas pessoas. Michel de Montaigne, no século XVI, defendia que o amor é um fogo cego que nos prende enquanto a amizade é um calor constante e calmo. Novamente os poetas acertam em cheio: “A amizade é um amor que nunca morre”, dirá Mário Quintana.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas há um detalhe: falta combinar com os/as amigos/as. Não existe a amizade em abstrato, já que é um sentimento que se cultiva entre pessoas. Posso ser um apreciador da amizade como virtude e, no entanto, não ter amigos/as. Isso nos leva a pensar algo muito simples e muito sério: quais pessoas posso dizer que são minhas amigas?

A imagem que me vem é de uma Van – eu ia dizer uma Kombi, mas soaria pré-histórico. A vida de cada um de nós é uma viagem na qual seguimos com nossa Van e nela levamos nossa bagagem e as pessoas que queremos que estejam ali e que – por nosso convite e concordância delas – topam seguir conosco. A amizade é algo tão mágico que permite que uma pessoa possa estar em mais de uma Van; não há exclusividade, já que uma das características de uma verdadeira amizade é permitir a liberdade – jamais prender.

Mas a viagem da vida, como todas as que fazemos, tem percalços, acidentes, contratempos, perda do caminho, pneu furado etc. É nesses momentos que pessoas sobem, outras descem. Há algumas que desejamos imensamente que sigam na nossa Van, mas preferem descer – vida que segue, literalmente.

Há outras cujas descidas são por nossa responsabilidade: não cuidamos, não cultivamos o vínculo. A relação esfria, o afeto se vai e elas ficam em uma curva da estrada. Às vezes é uma relação que caminha para se configurar como amizade sólida, mas deixamos a planta sem água e ela murcha. Ou então algo mais sério: quando pisamos na bola. Vacilar com quem quer que seja é duro, mas vacilar com um/a amigo/a é pior. Nesse caso, a descida da Van é um processo que deixa marcas.

Há também o imponderável. Situações diversas em que, sem que se possa responsabilizar A ou B, a amizade simplesmente evapora. Mudanças geográficas, a dinâmica da vida, as escolhas de cada pessoa, a visão de mundo que se modifica. Cada ser é um misterioso oceano. Esses casos costumam doer um pouco mais. Um ex-amor é doído, mas faz parte. Um ex-amigo, uma ex-amiga é algo que nos toca mais fundo. Fica uma saudade que, parafraseando Montaigne, não é um fogo que irrompe, mas uma dor constante. É um buraco na alma.

Por fim, existem ainda aquelas pessoas que julgamos amigas, mas que, com o tempo, percebemos que de fato não são; no fundo, são presenças que não nos fazem bem. Nesses casos, o melhor que podemos fazer para nós e para elas é que as convidemos a descer na próxima parada. E que sejam felizes em outras vans.

Portanto, está mais perto da sabedoria a pessoa que leva a sério as amizades que tem. E vale o alerta: parente pode até evoluir para amigo/a, mas são poucos os casos, pois o vínculo é distinto; colegas de estudo ou de trabalho até poderão subir de nível em nosso sentimento, mas não necessariamente. Já entre os contatos de redes sociais – indevidamente nomeados de amigos, como se fosse possível caber centenas de pessoas numa Van – pode ser que haja um/a ou outro/a que venha a fazer conosco a viagem. Porém, não é uma curtida de foto ou marcação de postagem que garante a subida na Van. Contato é contato, amizade é outra coisa.

A verdade é que a maioria das pessoas que encontramos – incluindo aquelas das redes sociais – são experiências ocasionais. Esbarramos com elas numa parada da viagem, num posto de gasolina, num semáforo e é só. Quem realmente compõe o sentido mais profundo de nossa existência é quem vai lá apertadinho na Van, às vezes por décadas, suportando a nossa chatice, ajudando-nos a encontrar o caminho e a superar as dificuldades, partilhando conosco a jornada. Para dizer de modo mais direto: amigos/as são poucos/as, por isso são tão valiosos/as.

Não precisa estar o tempo todo ao nosso lado nem telefonar (essa prática tão antiga) toda semana, porque é possível que alguém fique tempos distante, anos até, e ainda esteja em nossa Van. É outra magia da amizade. Como diz a canção de Renato Teixeira e Dominguinhos: “Verdadeiros amigos sabem entender o silêncio e manter a presença mesmo quando ausentes”.

Que a viagem de cada um de nós seja boa, na medida do possível. Dirijamos com cuidado, com paciência e atenção a tudo que encontrarmos pela estrada. E acima de tudo, cuidemos de levar conosco as pessoas que nos são realmente importantes, aquelas que desejamos que estejam, que topam e merecem estar em nossa Van.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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