A borracharia estava ainda vazia, apenas um serviço no pneu de uma moto. Em seguida, seria a minha vez. Vendo a agilidade do borracheiro relaxei um pouco. Já abrandava o estresse causado pela correria de trocar o pneu de manhãzinha para não atrasar a rotina do dia. Permitia-me, agora, observar o entorno. A rodovia com seu vai e vem; a água turva no pneu velho a juntar mosquito da dengue; aquela construção do outro lado que se iniciou há cerca de uma década e até hoje não saiu do lugar. O sol dava sinais do calor que faria.
Pude perceber seu cansaço quando começou a mexer no meu pneu. Salvando-me da dificuldade de escolher o que dizer, ele se adiantou: “É rapaz! Esse é o último”. “Descansar, né?, arrisquei. Então ele se abriu, contando que desde às sete da manhã do dia anterior estava de plantão. Vinte e quatro horas no trampo. Perguntei-lhe sobre a madrugada e ele se mostrou tranquilo. “Medo? Que horas o senhor acha que não precisa ter medo?”. Sem resposta, fingi uma urgência no celular, a estratégia moderna em qualquer situação desconfortável. Não existe mais, por exemplo, a conversa do elevador. Cada um no seu dispositivo, protegido dos outros e do mundo.
O serviço demoraria. Tinha que lixar, colocar o remendo, esperar. Paciência. De repente, o sossego da manhã foi quebrado: um motoqueiro chegou nervoso, sentado sobre o tanque da moto para não estragar o pneu de traz já vazio. O entregador de aplicativo, sem que ninguém perguntasse, soltou os cachorros. O pneu havia furado na saída de casa. Justo naquele dia, que tinha tanta entrega pra fazer. A culpa? Claro, do maldito prego que a essa altura, enquanto aguardava o meu pneu colar, o borracheiro já localizara.
Depois de uma sequência de impropérios que não convém reproduzir, o borracheiro, com a paciência de Jó, disse: “Mas moço, aí você me quebra”. O entregador mudou de expressão; eu, com cara de vaso de planta, onde estava fiquei. “Esse que você tá xingando é meu brother, velho!”. Então, tranquilamente começou a filosofar sobre a importância do prego na vida do borracheiro. Sem um, o outro não tem trabalho, não sustenta a família. São normais, ele nos levou a pensar, esses problemas que acontecem ao acaso, que a gente não controla. “Não pode é perder a cabeça. Furou, colou, seguiu”, disse, fechando a conversa.
Vocês já viram criança quando se avisa que não vai ter jiló no almoço? Pois é, foi a cara do motoqueiro. A raiva foi cedendo lugar a um semblante sereno. Ele largou até o celular e começou a trocar ideia com o borracheiro. Falaram do jogo do Atlético, da crise econômica, do feriado que estava pra chegar. E o tempo correu leve. Meu pneu ficou pronto e, quase com pesar, fui embora, deixando os dois que pareciam nem se lembrar mais de pneu, entregas e cansaço. Haviam concluído o óbvio: a vida é assim.
Fiquei matutando aquilo o dia todo. E não é que o borracheiro tem razão? Sem prego, não há borracharia. Até há, mas aquelas sofisticadas. Borracharia raiz, essas de beira de rodovia, precisam de prego na estrada, na rua, na garagem. Um prego. É o tipo de coisa sobre a qual não compensa perder os cabelos, resta acatar a força incontornável do acaso.
Mas a raiva existe. Ela está lá, ou melhor, aqui, ali, em todo lugar. Sentimos raiva do bolo que queima no forno, da tampa da manteiga que cai virada para baixo, da torneira que pingou a noite toda. Raiva por todos os lados. Sobre isso os antigos tinham uma visão interessante, em especial uma escola filosófica grega que chega até Roma e é conhecida como Estoicismo. Em geral, essa turma, na qual estão figuras como Sêneca, tem em vista a busca do equilíbrio, a “tranquilidade da alma”, por assim dizer.
Não devemos nos perturbar pelo que não se justifica. “Raiva do prego?”, perguntaria Sêneca ao motoqueiro. “Ora!”. O borracheiro, que a vida de trabalho tornou-se estóico, foi o terapeuta daquele jovem entregador numa manhã difícil. Ajudou-o a dissipar um afeto tão nocivo que em nada ajuda, apenas envenena e atrapalha nossa capacidade de pensar. Basta, na maioria dos casos, que respiramos fundo e organizamos as ideias para entender o que nos deixou irados. Bolos queimam, torneiras pingam, tampas caem, pregos furam pneus. Aliás, não apenas furam, mas são parceiros dos borracheiros.
Isso não quer dizer, no entanto, que não devemos nos enraivecer por nada. Ficar tranquilos como água de poço, como diriam os gaúchos. A raiva surge de um acontecimento ao qual damos certa interpretação. A questão é o que fazer com eventos como a guerra, a injustiça, o descaso dos serviços públicos? Aceitá-los e seguir a vida? Não é isso que diriam os mesmos estóicos. O ponto central para eles era o modo como lidamos com a raiva, o que a futura psicologia exploraria com profundidade. Agir sob raiva é risco na certa. Mas isso não quer dizer que a causa da raiva deva ser simplesmente aceita: ela precisa ser refletida para que, sobre ela, tome-se a melhor decisão.
Uma coisa, portanto, é o prego que acidentalmente cai na rua e fura o pneu do carro. Isso me ensinou o borracheiro naquela manhã: “Furou, colou, seguiu”. Mas outra coisa é, por exemplo, o buraco na rua ou na rodovia que causa a quebra do carro. “Culpa do excesso de chuvas”, dirá um desses pragmáticos governantes. Não! Chuva chove, governos administram. Se alguém se acidentar em razão da chuva é uma coisa; se alguém se machuca em razão da conservação das estradas é outra bem diferente.
Parece ser esse um dos grandes desafios da nossa vida pessoal e social: investigar as causas de nossos afetos, em especial, a raiva. Ela pode simplesmente ser um modo desnecessário de tornar o dia ruim; mas ela pode também ser a alavanca para que nos indignemos com algo que está errado e busquemos algum modo de reparar uma injustiça. Nem brigar com o que é normal, nem naturalizar o que não é.
Bolo que se esquece no forno é uma coisa, criança sem alimento é outra; a torneira que pinga é uma coisa; casa sem água encanada na periferia é outra; o prego na rua é uma coisa, buraco na estrada é outra. Saber distinguir tais situações é fundamental. Para que busquemos entender o que nos causa raiva. E, o mais importante, saber o que fazer com ela.