Por favor, não acelere meu áudio

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Fazia muito tempo que não falava com ele, já que desde a graduação nunca mais tive notícias. Retomar seu contato foi um desses milagres que a tecnologia nos permite. De alguém para alguém e dessa pessoa para outra até que chegue naquela. Fiquei feliz de saber que está bem e tocando a vida, remando sua canoinha na velha cidade para onde retornou. Recordamos nossas discussões em sala de aula. Naquela época, era fervoroso o debate sobre o retorno da filosofia como disciplina regular no ensino formal e cada colega propunha sua visão. Para alguns, ensinar filosofia era apresentar os filósofos na história e ponto; para outros, o caminho seria discutir temas da atualidade; para uma turma mais contemporânea, influenciada pela onda dos estudos Gilles Deleuze e Félix Guattari, a filosofia teria o papel de criar conceitos. É lamentável que, hoje, estejamos um passo atrás: brigando para que esta disciplina como outras não sejam excluídas ou, o que é pior, desfiguradas em seu conteúdo.

Perguntei sobre a família e me disse que estão bem. Não casou e nem quer. Mas mora com a irmã e o sobrinho. “Ah, esse sobrinho…”, suspirou. “Você acredita que o moleque tem catorze anos e acha que sabe tudo?!”. Sorri, respondendo que tenho uma de treze e um de dez que não acham isso: eles têm certeza. “É normal, rapaz!”, procurei acalmá-lo. “Por isso que não vou ter filhos. De cada dez vezes que encontro com ele, onze ele está no celular. Se ao menos visse coisas interessantes…”, arrematou, com uma pontinha de mágoa na voz.

Então me contou o que mais o tinha deixado possesso: descobriu que dos muitos áudios que ele passava para o sobrinho indicando filmes, livros e músicas, o que acontecia? O sobrinho os acelerava porque eram muito longos. “Rapaz”, disse, preparando um desagravo, “que diabo é isso? Se não quer me ouvir, me fala que não mando mais. Pelo menos seria um sinal de consideração. Agora, acelerar o áudio porque é longo? Ora! Longa é a Divina Comédia do Dante, a Odisseia de Homero. Sabe nada o moleque!”.

Deixei que falasse, porque senti que a carga de educar o sobrinho adolescente lhe pesava muito e a relação com a irmã não era das melhores. Tentei argumentar sobre o tanto de mensagens que recebemos de anúncio de cartão, proposta de empréstimo e coisas assim. “Isso não tem nada a ver! Esses casos aí não tem nem que ouvir; é cortar mesmo, sem ser grosso, é claro. Mas não sou vendedor de nada, eu sou o Tio dele, rapaz!”. Após um tempo, mudamos de assunto. Falamos de desimportâncias, criticamos a política, essas coisas. E me despedi, dizendo que pensaria melhor sobre esse lance do áudio. Fiquei até de mandar uma matéria de jornal que havia lido há alguns meses sobre o tema, sem dar tanta importância na época.

E não é que achei diversas reportagens? A conversa com ele, seguida da leitura, me fez levar a sério a noção de pressa ou o tal “tempo acelerado” de que tanto falamos. Acelerado por quê? Não tinha me atentado para o fato de que é comum o uso de tal recurso nos vídeos e no quanto já é tido como normal a pessoa acelerar episódios de uma série, por exemplo, para chegar logo ao último. Isso é assustador. Funciona, usando os termos presentes nas tais reportagens, como gatilho para o aumento da ansiedade. O resultado é trágico para a saúde mental. Gente do século passado como eu costuma enviar áudios gigantes ou então o famoso “textão”. É que ainda peguei a época das cartas com duas ou três páginas cada uma e que demoravam dias para ir e até meses para a resposta chegar. Quando o telefone se popularizou, ainda no pré-histórico orelhão de fichas, a conversa durava o máximo possível. Falar com alguém a distância era um acontecimento mágico.

Desde esse contato que fiz com o ex-colega de faculdade, tenho procurado me justificar quando envio áudio a alguém. Geralmente aviso: “Olha, ficou meio longo o áudio. Foi mal…”. Fico pensando o que se passa na cabeça de quem pré-visualiza uma mensagem com um “audião”. Mas precisava mesmo me justificar? Sinceramente, como meu amigo, preferia que me pedissem para ser mais breve do que, sem ser avisado, sofrer uma aceleração mecânica da minha fala. Um calafrio me passa ao constatar que muitos áudios meus já devem ter sido adiantados.

Fato é que são outros tempos e é a eles que temos de responder. A pergunta que fica é: onde se quer chegar tão rápido que uma mensagem de alguns minutos vai atrapalhar? Para quais compromissos ou atividades inadiáveis se está atrasado a ponto de se ter de acelerar o áudio de alguém? Aquela voz robótica, alterada… Como alertam os estudiosos do assunto, a pressa constante, esse estilo de vida em alta rotação tem a ver com a dinâmica da sociedade atual. Ocorre que os recursos tecnológicos de aceleração de conteúdo, associados a stories, shorts e tantos outros, acabam por contribuir para um estado mental de urgência que não encontra correspondência na vida real: enquanto no dispositivo eu aumento a velocidade do roteiro, no filme da vida as cenas se passam sem que eu possa acelerá-las. É o terreno perfeito para transtornos, fobias, síndromes de variadas expressões.

Fico pensando, que lugar teriam em nossos dias aquelas velhas figuras contadoras de causo que conheci na infância. Até hoje me lembro de quando alguém tentava adiantar o final de uma história que, em geral, durava dez minutos, ou mais: “Vai escutando”, dizia pacientemente o velho contador, exigindo que o ritual da escuta fosse respeitado. Sem ouvintes não há lugar para o narrador, já nos ensinava Walter Benjamin. Tal lógica de coisas rápidas implica uma contradição gritante: desenvolvemos a tecnologia para, entre outras coisas, ampliar nossa capacidade de comunicação; no entanto, a mesma tecnologia dificulta que nos comuniquemos com as pessoas. Meu velho camarada, em sua luta pela educação do sobrinho, está correto: temos que repensar urgentemente nossa relação com dispositivos eletrônicos. Caso contrário, o que era para ser uma ponte para o contato interpessoal, superando a distância, vai se tornar cada vez mais um muro que nos separa e isola.

Acho que um sinal de alerta poderia ser este: quando a conversa com alguém, por texto ou áudio, começar a se estender a ponto de nos incomodar; isso pela sensação de que, nesse meio tempo, nova notificação poderá ter chegado. Precisaremos, então, nos perguntar se o que nos atrai nos aplicativos de contato é, de fato, a relação com as pessoas ou apenas o próprio dispositivo, sua sedução luminosa e o universo de coisas que nos oferece – coisas cujas pessoas nos atrapalham de acessar.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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