Que as crianças cantem livres

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

(Dedicado a Vinícius Figueiredo)

Como todas as pessoas que se preparam para ter filhos, sejam biológicos ou não, na nossa casa não foi diferente: ajustes no quarto, expectativa, ansiedade. E, claro, uma seleção de músicas para ninar, para inspirar, para receber as crias. Nos nossos pré-históricos CD’s tinha de tudo: música instrumental para o sono, cantigas de roda, coisas da Palavra Cantada e do Dércio Marques que começávamos a conhecer, entre outras. Passados os anos, nas viagens, quando as crianças dormiam, era comum que nós, mãe e pai emotivos, seguíssemos ouvindo as canções, não raro com lágrimas nos olhos. O fato é que essas canções chamadas infantis são, na verdade, músicas para adultos. Não digo as comerciais, da moda, que também ouvíamos. Do meu tempo de pai novo, é provável que saiba de cor os discos da Galinha Pintadinha ou do Patati e Patatá.

Falo mesmo é de outras, feitas com intensidade e poesia, tentando captar o mistério de uma vida que se torna, para sempre, ligada à sua. Ter filho/a, dizia um amigo, é perder para sempre o direito ao desânimo. É um ponto sem retorno. Fora os casos de abandono e descaso – e são tantos! – quem de fato pode e resolve encarar a experiência tem sua vida totalmente redimensionada e, mesmo no limite da precariedade, redescobre a beleza das coisas simples e exerce um sentimento tão nobre que é o cuidado.

Isso não torna quem tem filho/a melhor e nem pior do que as pessoas que não têm. Estas terão outro ponto de vista e seus motivos legítimos. Aliás, tenho profundo respeito por quem, conscientemente, escolhe não ter filhos. E nem sempre é apenas por estilo; muita gente o faz pela incerteza do futuro, sobretudo em tempos de crise ambiental e decadência civilizatória.

À parte essas diferenças, creio que a criança, ao existir, toca um elemento universal do humano: a novidade. Isso vale para qualquer tipo de pessoa ou núcleo familiar. Sei que falo uma obviedade, mas, por vezes, é preciso. Volto às músicas das quais falava para reforçar meu argumento. Veja o que, na música “Criança”, diz Dani Lassalvia: “Quando eu era criança e andava pela estrada/ Eu criava fantasias como visão encantada/ Tudo eu mudava com varinha de condão/ Com um toque de magia/ Tinha o mundo em minha mão”.

A magia, o encanto, o desejo de tudo mudar, a capacidade de inventar… São características que nos definem, mas em razão dos afazeres e do corre- -corre da vida de adulto as deixamos de lado e não são poucas as pessoas que desaprendem isso tudo. Salvas estão as que se tornam artistas, porque a arte é uma forma de continuar criança. Isso aponta para algo muito grave: o mundo é carrancudo e sério demais, já que obriga aquele serzinho, que todo mundo já foi um dia, a deixar tudo no seu baú e tornar-se pessoa adulta, responsável. Há um problema nessa engrenagem. A educação é, quase sempre, uma deseducação.

Interessante o fato de que a ideia mesma de infância seja muito recente em nossa história; isso tem pouco mais de dois séculos. Ocorre que inventamos a infância, porém, mesmo reconhecendo sentimentos próprios e direitos dessas pessoinhas, restringimos o que lhes é característico a uma fase inicial da vida. Depois, parou! Chega de brincar!

Não deveríamos parar. Por isso é tão comum a saudade. É o que canta o Dércio Marques: “Que vontade voltar, de ser criança/ E ver a natureza bem perto de mim/ Só pra ver passarinhos dar pulo nos galhos/ E ver mangas caídas, perdidas no chão/ Sentir o que sou, ver o sol nascer/ Depois nadar e brincar de amor/ Esse sou eu, esse sou eu”. Sentir o que sou… Levamos uma vida inteira de adultos para reaprender o que, na infância, sabíamos espontaneamente.

A propósito, não faz muito tempo, um amigo que é apaixonado pela Colômbia, indicou-me um texto que fala de educação e compôs a chamada Missão de Ciência, Educação e Desenvolvimento que, no início dos anos 1990, propunha soluções para aquele país, na época, cortado pelo narcotráfico. Entre os intelectuais estava Gabriel García Márquez, já reconhecido como um dos maiores escritores da América Latina e do mundo.

É profundo o texto de Gabo, como era conhecido, resgatando toda a herança colonial que marca o país. Demonstra com primor que a conjuntura só se explica por um processo histórico de longa duração. O mais instigante, porém, é sua tese, que está no título do texto: “Um país ao alcance das crianças”. O autor vai ao ponto: “nossa educação conformista e repressiva parece concebida para que as crianças se adaptem à força a um país que não era para eles, em vez de colocar o país ao seu alcance para que eles o transformem e o engrandeçam”. Direto como uma flecha!

Esse país seria, indubitavelmente, melhor que o dos adultos que “restringe a criatividade e a intuição”, de tal forma que “as crianças esqueçam o que sem dúvida sabem desde o nascimento”, entre outras coisas, que “a vida seria mais longa e mais feliz se cada um pudesse trabalhar naquilo que gosta, e apenas nisso”. Está aqui, resumida, o que pensadores e ativistas, há pelo menos dois séculos, entendem por revolução.

Quando Milton Nascimento cantava que queria ver os meninos no poder, não estava brincando. Está na mesma sintonia de Gabo. Evidentemente, não se trata de colocar as crianças naquele aparato formal, frio e impessoal de nossas instituições políticas. Seria preciso reinventá-las totalmente. Só num país novo seria possível, como diz o escritor colombiano, “uma educação, do berço até a tumba, inconformista e reflexiva, que nos inspire uma nova forma de pensar”.

Não é fácil. Entre o hoje e o amanhã há muito chão. Mas seria menos complicado, provavelmente, se desaprendêssemos a adultice e recuperássemos a meninice sapeca e criativa. Tomássemos nossa varinha de condão para criar coisas novas. Por andarmos tão sérios, o mundo virou o que é. Lugar de gente chata e triste.

Precisamos ouvir mais – e de verdade – as canções infantis. Cantar para nós mesmos, não só para as crianças, uma cantiga como a de Juraíldes da Cruz: “Não sou tanajura, mas eu crio asa/ com os vaga-lumes eu quero voar/ Um céu estrelado, hoje é minha casa/ fica mais bonito quando tem luar/ Quero acordar com os passarinhos/ cantar uma canção com o sabiá”. Isso não muda o mundo, diria um adulto típico. Tem razão. Não muda. Ao contrário, cria um mundo. Ao alcance das crianças.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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