O tempo que foge

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Mais uma vez me cai sobre a cabeça o poema “O tempo”, de Mário Quintana. Um amigo me enviou, sabendo que este é um dos temas mais fascinantes para mim. Mas o requinte de crueldade foi a forma escolhida: em vídeo e lido por Antônio Abujamra. Isso quebra qualquer pessoa! Impossível não se sentir tocado ao vê-lo recitar: “Quando se vê, já terminou o ano… Quando se vê passaram cinquenta anos”. É curioso como que, depois de tanto tempo que o poema me persegue, esse trecho me parece, agora, mais forte que nunca.

Está certo o Quintana, como de costume. Não se pode perder tempo com o que não vale a pena, tampouco desprezá-lo, muito menos esquecê-lo. É preciso sempre lembrar de que ele está passando, está fugindo, está-se esvaindo. Tempo é vento, que de graça vem e vai. Indelevelmente rápido, único. Deve-se colhê-lo a cada manhã, como se faz com o milho, a uva, a maçã. Mas como? Eis a questão.

Tempo é – ou deveria ser – para se viver com pessoas queridas, no namoro, vendo um bom filme ou, então, na solidão de si, fecundamente. Com a leveza de um canto gregoriano, com o som de um violino ou um bom rock, ou uma boa dança, ou um bom aconchego de um colo, melhor ainda se for à beira do lago quando as estrelas se acendem no céu. Mas e o jogo duro da vida? Seria possível que o trabalho, esse grande ladrão de nosso tempo, fosse algo de realização e não apenas de sofrimento? Eis outra questão.

Mas voltemos ao plano ideal. Tempo é para ser curtido, apreciado como um bom vinho ou um bom café, relembrado como um bom livro, recebido como um filho ou uma filha após meses de ausência. Tempo é algo sagrado que não se vende nem se compra, apenas se nos dá, suave e docemente. Mas, afinal, por que nem todos o têm se ele é gratuito? Pois é.

O poema de Mário Quintana não trata desses pormenores sociológicos. Que os estudiosos e militantes das causas humanistas tratem de responder a essas inquietações. O que o poeta apresenta é algo diferente ou, se quisermos, algo sobre o tempo visto por outro ângulo. Penso que ele trata da batalha com o tempo como a mais antiga de cada pessoa – a mais árdua e a mais encantadora. Ele nos faz pensar nas tardes e noites desperdiçadas, nas manhãs não vividas, nas refeições não saboreadas.

E eis que tudo se acaba. À beira do fim apenas a comum exclamação: “Devia ter aproveitado melhor…”. Talvez um bom pedaço da sabedoria consista nisso: não deixar para dizer o quanto o tempo é valioso apenas no velório – à beira de um caixão ou dentro dele. Ao contrário, dizê-lo no auge da potência física e intelectual, quando ainda se tem saúde, quando o vigor permite caminhar estradas, cheirar flores, saborear sorvetes, tocar espumas, vislumbrar cores, sentir amores ou dores.

Outro pedaço de sabedoria: amar, cuidar, cultivar virtudes, tudo isso não porque alguém disse que é bonito ou porque algum dogma religioso nos obriga, mas sim por escolha. Fazer coisas boas de forma livre é a única maneira de nos parecermos com o mar que se dá à praia ou com a rosa que entrega seu néctar ao beija-flor, ou com a brisa que toca os corpos, fazendo-os sorrir de prazer.

O sol que nos toca o coração ao surgir no horizonte, a lua que encanta amantes quando varia sua luminosidade, a água que nos sacia e descansa. Tudo isso é simples e não exige riqueza, diploma ou qualquer forma de distinção social. O que nos faz pensar que a natureza é menos complicada do que o modo de vida que inventamos e supomos civilizado. Modo de vida, este, que não integra fauna e flora, muito menos o tempo.

Suponho que se aprendêssemos algo com o que os antigos chamavam de cosmo e sua grandeza, então entenderíamos melhor aquelas pessoas, muitas vezes mártires de regimes ou sistemas políticos nefastos, que viveram exclusivamente para a humanidade e esqueceram de si mesmas. A causa, a humanidade, o todo eram algo mais importante. Por consequência, estranharíamos cada vez mais atitudes e práticas egocêntricas.

Se formos bons aprendizes na escola da vida, tendo o tempo como professor, veremos, quem sabe, que coisas como a falta de respeito, a falta de cuidado, a falta de amor são intervalos, são rasgos, são vácuos, são rasuras que surgiram quando nos afastamos de nossa humanidade e nos deslocamos para as terras estranhas do desumano, do desnatural, do desterrado, do desligado.

Seguindo as lições do Mestre Tempo repudiaremos, talvez, o que nos atrapalha a saúde e a das pessoas que amamos, tudo o que tira a liberdade, tudo o que afasta, tudo o que divide, tudo o que separa. Cultivaremos o que une e reúne, o que sincroniza. Algo próximo do que propõem as filosofias da unidade com o Todo do Universo, nossa casa mãe, nossa mãe terra, nossa família-humanidade.

Mas talvez não tenhamos tanto sucesso na empreitada – o normal é que não consigamos, pelo exato motivo que nos faz refletir sobre tudo isso: o tempo, que é curto. Mas algo se pode fazer, ou melhor, pode-se começar por algum ponto: lembrar-se pelo menos uma vez no dia que se está vivendo. Não é tudo, mas já é muita coisa.

De passo em passo, aprenderemos um pouco mais sobre a arte de atravessar a ponte do tempo. Ou ao menos estaremos tentando. Já é um modo de evitar que ele não escorra em vão. A quem, como diz o poema de Quintana, já tem os cinquenta ou mais, uma coisa é certa: a não ser que finja para si, a verdade sobre o tempo se impõe implacavelmente. E tudo o que foi dito nas linhas acima deixa de ser mera reflexão e passa a ser uma busca diária. Verdade maior: na batalha com o tempo é ele nosso maior adversário e o nosso mais fiel companheiro.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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