Encontro de fantasmas

0
81
José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

O primeiro estranhamento foi na chegada. Ela preferia que as crianças ficassem calçadas, mas sua mãe, que os recebera no portão, já foi logo dizendo aos netos para arrancarem os sapatos. Ela se lembrou que, quando criança, também corria pelo quintal de pé no chão. Mas agora pensava diferente. Vencida, pegou a bagagem e entrou.

Filhos, sobrinhos que ali já estavam passando as férias, amigos dos amigos… um furdúncio pela casa. A mãe parecia adorar aquela bagunça e os incentivava: “Vão lá na goiabeira! Vejam se tem fruta pra vocês!”. Ela não se opôs. Chegar ao final do primeiro dia em paz era a meta. Lembrou-se de uma canção que a acalmava e foi para o quarto cantarolando. Tinha que desfazer as malas.

A fotografia desbotada permanecia sobre a penteadeira: ela, os três irmãos do meio e a irmã mais nova. Todos com as roupas de festa junina na varanda da velha casa. Há quanto tempo não ligava para eles? Soprou esse pensamento para longe. Lembrou-se do avô, de quem conheceu apenas uma face afetuosa e do qual tanto gostava. Um sentimento dúbio a invadiu: aquilo tudo era uma recordação boa, mas, ao mesmo tempo, parecia ser uma outra vida, de uma outra pessoa.

O segundo estranhamento não demorou. Agora a mãe e o pai davam balas para a meninada. Ela interrompeu a farra dizendo que já haviam comido doce demais na viagem. “Cada parada do ônibus era uma coisa!”. O pai a olhou desapontado, a mãe fingiu arrumar a blusa do netinho mais novo que ameaçava chorar. Era ceder ou entrar pra história como uma mãe cruel. Voltou ao quarto e a farra seguiu.

À noite, as histórias de assombração que ela sempre detestou. Nunca contava essas coisas aos dois filhos. Mas por que a garotinha e o menino agora se deliciavam ao ouvir o avô? Não eram eles os medrosos, que até hoje acordavam com pesadelos? Por que ficavam diferentes na casa dos avós?

O dia seguinte amanheceu nublado. A mãe, depois do café, chamou-a para ajudar com o preparo da dobradinha, prato que, por sinal, ela também detestava. “Por que você é tão severa com as crianças?”, disse a mãe, com ares de interrogatório. Ela respirou. “Não sou severa, apenas tento educá-los bem!”. O restante da frase ela não disse, mas ressoou no seu coração: “… você é que era severa com a gente!”.

Enquanto ela se debatia com frases contidas, a mãe, do seu lado, também se desassossegava. A dificuldade em dialogar com a sua filha mais velha lhe fazia ressurgir um remorso imenso por ter sido tão dura com os cinco filhos. Mas não tinha coragem de assumi-lo. Calou-se. Abrir aquela porta da memória era arriscado; poderia vir tudo junto, sua infância, as duras repreensões do velho pai. Tem coisas que precisam ficar no porão. Para sempre.

À noite os avós quiseram levar os netos à igreja, fiéis que eram da tradição Metodista. Mas ela havia se convertido ao catolicismo do marido quando se casou. Aquilo era um problema agora. Depois de várias faíscas, frases ditas e muitas silenciadas, resolveram que a menina iria com os avós e primos, enquanto o filho seguiria com a mãe. Na saída, como forma de protesto final, ela lembrou do aniversário de quatro anos de morte do marido e, não sem maldade, disse que o que todos deveriam fazer era ir à missa por aquele motivo. “Quarto estranhamento”, pensou, enquanto fechava o portão.

Daí em diante parou de contar. Foram tantas desavenças que, ao final de cinco dias, ela apenas queria que o tempo passasse, para logo voltar à cidade onde vivia com as crianças. No apartamento, pelo menos, estaria protegida daquelas coisas. Poderia, então, deixar tudo na gaveta uma vez mais. Assim como quando saíra de casa, à revelia dos pais e dos irmãos, para cursar psicologia. “Grande coisa!”, pensou, lembrando-se que amigos dela de áreas totalmente diferentes eram mais bem resolvidos com suas famílias. “Eu quis fazer psicologia por que tinha problema ou arrumei problema por que fiz psicologia?”. Essa frase besta, pela enésima vez, voltava-lhe. Deu de ombros. Seguiu arrumando as malas.

No ônibus, um suspiro de alívio ao se despedirem com acenos pela última vez. A manobra a fez bater a cabeça no vidro: “Mais essa?!”, deixou escapar com raiva. A filhinha não entendeu; o mais velho já jogava no celular. Na rotatória de saída da cidade, deixando o joguinho de lado, o menino assumiu o que seria lugar da mãe e perguntou à irmãzinha: “E aí, gostou do passeio na casa da Vovó?”. “Demais da conta!”, respondeu a pequena, com olhos brilhando.

Ela permanecia calada. O nó na garganta lhe era quase insuportável. O máximo que conseguiu dizer foi: “Vamos pra casa, meus amores!”. E adormeceu profundamente. Sonhou que era de novo criança e passeava por um lindo jardim. Sentia-se leve e feliz. Pegou duas flores e correu para dar aos pais que a olhavam de longe. Quando ia entregar à sua mãe, esta desapareceu e a flor se transformou numa abelha furiosa que picou seu dedo. Chorando, ia pedir socorro ao pai, mas este agora era apenas um tronco seco de árvore.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui