O Vestido

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Era a décima segunda entrevista desde que pegara o diploma. Até agora de nada havia servido o curso supletivo do ensino médio como diziam. A manhã fria lhe piorava o resfriado. “Que isto não me atrapalhe!”, pensou.

Onze respostas negativas, onze frustrações. Já não sabia mais como responder às perguntas. No início, tentou representar um papel como se tivesse mais experiência e fosse mais qualificado do que de fato era. Depois, mudou de estratégia e foi totalmente honesto. Nenhuma das formas tinha dado resultado.

Mas desta vez parecia realmente diferente. É que a moça que agendara a conversa ligou mais duas vezes para saber informações do currículo. “Duas vezes, mulher! Tenho chance”. Ela o olhou com ternura. Não queria atrapalhar o ânimo daquele que dividia com ela o prato, o teto e a luta.

Tentava a todo custo evitar a frase “Tenho chance!”, que insistia. Não costumava contar com a galinha antes do ovo, mas não conseguia se conter: era o veneno da esperança. Ele compraria móveis novos, brinquedos para as crianças. O vestido para ela com o primeiro salário. E um sapato para ele, se desse. Os dois pequenos não sabiam, mas o casal fez planos entrecortados de medo e fantasia.

A mesa. Redonda. Fria. Amedrontadora. A equipe. Três. A chefe e dois gerentes. A empresa “Saúde e Felicidade” era grande. O nome imponente dava a ideia do vasto campo de atuação: plano de saúde, clínica de estética e serviço funerário. “Tenho chance?”. A frase se mudou em dúvida perturbadora.

O cargo era de motorista, função que ele havia ocupado por muito tempo na roça, dirigindo caminhão de leite. Na cidade foi servente de pedreiro até que precisou parar. Alergia. Problema de coluna. Mas com empenho conseguiria retomar a prática ao volante.

As perguntas foram curtas. Poucas. Não pôde se expressar. Teve vontade, mas as palavras não vieram. Ficou com a sensação de não ter dito quase nada e o pouco que disse não era o que queria. Ah! Se pudesse começar de novo… Pediram-lhe tempo. O relógio seguindo lento, arrastando-se.

Dez minutos depois, a resposta vinha para destruir seu castelo de sonho. Logo em seguida, podia ser visto na rua, sem rumo, sem prumo. “Eu tinha chance…”. Os brinquedos, o vestido… Doíam-lhe a cabeça, as costas, os olhos.

Nove horas marcou o relógio. Não sabia para onde ir; não queria ir a lugar algum. Torturava-se pensando em como conseguir alguma ocupação. Não aguentava mais aquele suplício de entrevistas. Precisava beber alguma coisa! Mas e a promessa que fizera a ela?

Oito quadras caminhadas ao léu, mergulhado em pensamentos desconexos. A gravata lhe incomodava não menos que a constatação de que não iria conseguir um emprego nunca. Como chegar em casa? Como adiar os planos feitos com ela? Como suportar a visão dos brinquedos quebrados dos filhos?

Às sete horas da noite podia ser visto bêbado, imundo, desfalecido. A gravata havia sido trocada por uma dose, o sapato por outra. Arrumou confusão de madrugada, por pouco não morre numa briga sem sentido.

Às seis da manhã era levado para casa, pela polícia. A esposa já passara por isso anos antes, nas primeiras dificuldades de moradia enfrentadas pelo casal. Desde então, rezava pra que ele nunca mais voltasse a beber.

Cinco meses de recaída no vício e desespero dela. Brigas, internações. A perda dos filhos. A perda dela, que seguiu bravamente a batalha pelo sustento da casa. A separação. Era uma vez os quatro.

Três anos depois ele pegava as crianças, num domingo de sol, para ir ao parque. Estava sóbrio há tempos e era o dia de ficar com os pequenos. Não os levaria, em hipótese alguma, ao barraco onde vivia.

Dois picolés. Foi o que pôde. Não houve muita conversa. “Sua mãe está bem?”, perguntou. “Sim! Ele é legal”, disse o mais novo. “Comprou um vestido pra mãe!”, completou o mais velho. Ele se calou. A sorte tinha sido mais generosa com ela. Bom para os meninos.

Um ano depois ele era visto no carro preto de vidros escuros e com motorista. Novamente, de gravata e sapato novo. Pouca gente além dela, o novo marido e as crianças. Poucos parentes, algumas velas e a chuva fina.

Poucas demonstrações de sofrimento por ele, o acometido de cirrose. Ela pagou as despesas e deu-lhe na morte a dignidade que ele não encontrou em vida. E também derramou, escondida, uma lágrima, cheia de dor e ternura.

Ela não percebeu e nem poderia, mas uma coroa de flores grandes fazia parte do pacote da empresa do serviço funerário. A faixa dizia: “Nossos mais profundos sentimentos à família – Grupo Saúde e Felicidade”.

Contato: freire.jose@hotmail.com

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