Os assuntos e as horas andaram em falta comigo e nem o estresse em excesso [causado por esse novo Coronavírus] ou o riso deixado para depois – e não havia nariz em pé ou salto alto de jogador-estrela, reencontro, técnico filho da mãe ou política dos insensatos que tornassem as coisas diferentes nesta coluna de falta de criatividade e vontade.
Mas o mundo tem mesmo uma lógica curiosa, porque você passa meses ou anos vendo alguém todos os dias, ou porque estuda junto ou porque trabalha junto ou porque vive junto ou porque ama tanto que não sabe viver sem ou porque não tem outra opção, e um dia não vê mais, não encontra mais, não ama mais, não vai à festa de despedida, ao casamento ou ao aniversário, e pronto, acabou-se: vão-se todos para o baú das memórias intocadas, e outros chegam, amam, vivem, trabalham, decepcionam ou consertam. Vão-se todos e um dia voltam, porque ir é muito bom; poder voltar é melhor ainda.
E assim, enquanto perpasso essas linhas, meu pensamento voou até o poeta Mário Quintana, para quem “Sonhar é acordar-se para dentro”. E foi assim que me lembrei do escritor Eduardo Galeano, destacando que o direito de sonhar talvez devesse ser um dos 30 tópicos das Nações Unidas, porque, não fosse por ele, não haveria nenhum outro. Galeano diz que, de posse do direito de sonhar, a vida ia ser diferente.
Diz que haveria nas ruas e avenidas carros sendo atropelados por cachorros, justiça e liberdade, ar puro sem veneno dos canos de descarga, mulheres negras na presidência do Brasil e dos Estados Unidos, mulheres índias no comando da Guatemala e do Peru.
Diz que haveria cozinheiros que não acreditam que lagostas gostam de ser servidas vivas, historiadores que não acreditam que países gostam de ser invadidos, políticos que sabem que gente que tem fome não gosta de demagogia.
Diz que, de posse do direito de sonhar, não haveria noite que não fosse vivida como se fosse a última, nem dia que não fosse vivido como se fosse o primeiro. Diz o que verdadeiramente importa, ou devia importar.
E, relembrando Quintana e me escorrando em Galeano, foi que me livrei da solitária agonia de estar encarcerado no próprio corpo. Um corpo com um rosto que, às vezes, me faz enxergar toda a história através da retina desfocada dele, da ironia dele.
E ironia, desejo, lembrança, egocentrismo e arrependimento às vezes dão mais medo que essa doença Covid-19, e eu preciso me lembrar disso à todo momento, da nossa mania de ser amado sem saber como retribuir, dos escorregões que colecionamos sem saber como nos desculpar, dos cinismos, dos exageros, das palavras que não precisávamos ter dito, ou devíamos e não dissemos.
E enquanto o meu corpo, jaz pesado e inerte, minha mente, ao contrário, é capaz de viajar com a leveza de uma borboleta. Uma lição e tanto.
Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni) e colunista do Jornal Diário Tribuna.