Em defesa da ciência

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José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

As últimas quatro décadas foram alucinantes em termos de desenvolvimento tecnológico. Estaríamos, no dizer de muitos, na era da informação. Embora o avanço tecnológico possa inspirar uma ideia de salto para frente na civilização, é preciso cautela. A trama social é muito complexa. Entre tantos elementos que a compõem está o chamado senso comum, essa teia de ideias e concepções gerais que vamos construindo nas relações cotidianas. Ele é atravessado por interesses, preconceitos, juízos de valor, assim como por elaborações criativas e construções espontâneas. Tudo isso somado forma uma determinada interpretação da vida e de seus fenômenos. Numa palavra, no senso comum impera a força da opinião. Como é sabido, uma opinião pode ser acertada ou não. Precisa ser verificada com maior rigor. É onde entra um outro modo de interpretação da realidade: a ciência.

Para encurtar a conversa: enquanto a opinião é livre e descompromissada, a ciência persegue a verdade com rigor e, para isso, traça um plano e uma meta. Ao alcançá-la, verifica se o plano foi bem sucedido ou não e por quais razões. Embora pareça complicada essa conversa, na realidade não é. Foi graças a tipos variados de “ciência” que construímos ferramentas, desenvolvemos a agricultura, confeccionamos artefatos etc. Quando dominamos algum processo, podemos testá-lo, aperfeiçoá-lo e reproduzi-lo. Se permanecermos no campo da mera opinião, ficamos ao sabor da sorte e do acaso.

O ponto mais alto dessa história poderia ser situado, sem maiores detalhes, há 500 anos. É o contexto em que se consolida o método científico moderno. Graças a ele, falando de modo genérico, conquistamos maiores condições de conforto de vida e, simultaneamente, superamos problemas que nos prejudicavam. Para ficar num recorte simples, o da saúde, é inegável que hoje temos maior controle sobre elementos que a prejudicam e também sobre outros que a beneficiam. A medicina moderna é um belo exemplo.

Dito desse modo, parecerá ao leitor que tudo foi um mar de rosas. E seu estranhamento é acertado. Aliás, quem se situa no campo da filosofia é, por princípio, crítico da ciência, porque sabe que ela não é neutra: está condicionada por fatores econômicos, políticos e sociais. Pode mesmo ser usada para prejuízo das pessoas ou de grupos sociais inteiros como a história mostra. Além disso, um acento exagerado na ciência – o chamado cientificismo – pode deixar em segundo plano ou mesmo ignorar elementos constitutivos da vida como a intuição, a sensibilidade e sobretudo a sabedoria ancestral dos povos que, paralelamente ao método científico, vem ao longo dos séculos constituindo também formas autênticas de saber.

Então não se trata de uma apologia cega. Mas o leitor viu bem no título: defesa da ciência. Por que? A razão é simples: porque o momento exige. A chamada era da informação não tem filtro, ou seja, da mesma maneira que possibilita a propagação de conhecimento seguro também dá espaço a opiniões sem fundamento algum, a não ser a convicção de quem as lança de forma inconsequente.

Em termos de saúde o que temos visto é um festival de horrores. Quinhentos anos de tradição de pesquisa e controle de medicamentos, vacinas e procedimentos, entre outras coisas, são colocados em dúvida por qualquer um que, acreditando ser dono da verdade, impõe a sua opinião como a verdadeira. Em tal situação é preciso afirmar de modo contundente: com todos os limites e contradições, o método científico ainda é o que temos de mais apropriado para discutir saúde pública. Aliás, um parêntese: é sobretudo pela finalidade social da ciência que se defende a manutenção das Universidades Públicas, centros de pesquisa e produção científicas. Se elas forem privatizadas, sua finalidade deixará de ser pública. Simples assim.

Volto ao ponto. Não, caro leitor. Aquele áudio de whatsapp, aquele “meme”, aquele vídeo de um suposto gênio que você e eu recebemos não pode ter o mesmo grau de validade que a pesquisa feita por um profissional que passa anos estudando, submete-se a avaliadores, respeita os procedimentos e somente depois publica os resultados em veículos apropriados. O que chega a você e a mim, nessa enxurrada de informações, é, com raras exceções, mera opinião, muitas vezes descaradamente falsa. Verifique a fonte, questione o conteúdo, analise sites de reconhecimento científico oficial. Pense bem. Faça um bem a si e à sociedade: não seja transmissor de informações que não sejam confiáveis.

Na base da tradição filosófico-científica ocidental está, entre outros pilares, a figura do grego Sócrates, para quem a sabedoria não consiste em posse da verdade, mas sim em reconhecer a própria ignorância e, por isso, lutar constantemente para superar as falsas opiniões. A ciência é uma tentativa permanente de busca do conhecimento. Não é um dogma. Por isso a necessidade de tempo, de teste, de verificação, de correção das falhas. Com tudo isso, ainda é o caminho para a solução de problemas. No que toca a saúde, um tema tão fundamental em nossos dias, não troquemos a ciência pela opinião de quem se julgue dono da verdade. Sobre ciência, ouçamos cientistas.

Uma posição social, um cargo político, uma função religiosa não conferem a ninguém o domínio da verdade sobre a ciência e muito menos sobre a saúde. A propósito, foram estas figuras que se indispuseram contra Sócrates na antiga Atenas. O que elas temiam? Aquele velho filósofo? Não. Temiam que as pessoas, ao ouvirem Sócrates, superassem o nível da mera opinião. Para manter seu prestígio social e o poder político, tais lideranças necessitavam que reflexão crítica, base da ciência, fosse combatida.

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