Eu e uma mulher chamada mar…

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Aníbal Gonçalves – Pedagogo

No primeiro dia deste ano eu vi o mar. Sempre um indescritível reencontro com as emoções da juventude. Entardecia com um suave brilhar como o que reluz no mais profundo relampejo nos olhos castanhos da amada quando saciada, repousa entre os lençóis, depois dos embates do amor. Após tantos e incontáveis dias sem sair de casa por vários motivos, na manhã de sábado, fui passear pelos meus lugares favoritos daquela cidade litorânea. E tempos havia em que não me divertia tanto, ria meu riso que saía fácil de minha boca porque brotava, nascia do coração feito um olho d’água recém-surgido por entre as pedras polidas da cachoeira da Ponte de Pedra, em minha terra natal Coroaci. Tão bom sentir-me pleno de felicidade e de alegria nem que fosse pelo brevíssimo espaço de algumas horas joviais. Para mim, estar entre amigos trata-se de uma verdadeira bênção que, somente aqueles que os têm, como eu, podem, sem dúvida, desfrutar decentemente e com toda intensidade. Cada vez mais acredito ser a amizade um dom divino, indispensável à vida.

E assim, eu pude ver o mar num eterno, ansiado, desejado reencontro feito um homem e seu espelho. Entre o mar e eu existe uma antiga intimidade jamais perdida que foi sendo construída, arquitetada desde a vez primeira em que nos vimos durante a minha já longínqua juventude. Debruçado sobre meus pensares, deixei-me a fitar, enlevado, as ondas como se nunca as houvesse visto, esquecido de todos os relógios que comandam minha jornada durante a semana. Lá na risca móvel do horizonte, uma grande vaga se alevantou, poderosa e sobranceira e veio quebrar-se mansamente na margem, quase sem fazer espumas. Ah, eu e o meu bucolismo retrô.

Como se houvessem combinado se alternar num carinhoso rodízio, vez em vez, um amigo vinha me chamar para um bate-papo. Com uma suave obediência, eu o seguia de volta à mesa para mais uma rodada de conversas, contação de “causos”, desenrolar de piadas e muitas, muitas sonoras gargalhadas. Passado certo tempo, novamente eu retornava, qual um bicho amestrado, a debruçar-me sobre meus pensares, hipnotizado pelo chamado do mar que penso somente eu ouvia, apesar da alegre barulheira a meu redor. E novamente me deixava olhando fixamente o mar enquanto me permitiam. Ao longe, minúsculo na dimensão da distância, um barquinho vagava, parecendo permanecer parado no mesmo lugar em meio à vastidão do oceano. E eu olhando o mar com olhos de maravilha, tentando unir a sua imensidão infinita à humilde pequenez de minha alma enfim pacificada pela atlântica paisagem. Ah, que romântico sonhador de sonhares impossíveis insisto em continuar sendo enquanto perduram esses momentos do mais puro enlevo e adoração incontida. Besteira lírica de que não abro mão.

Eu digo e repito sem a menor hesitação: o mar é mulher, eu sei. Quem o olhar bem, verá que ele possui as formas de uma mulher na curvilínea silhueta de suas ondas e uma longa e bela cabeleira de marinhas algas e o hálito perfumado de seus ventos mareiros. Entanto, o mar é uma mulher diferente de todas as outras, pois que ao invés de possuí-la nas noites de lua cheia, é ela quem nos possui e nos toma posse a seu bel prazer. Tem o gênio doce e tempestuoso das mulheres bonitas e traz oculto em suas profundezas o lúbrico perigo de sua irresistível sedução e diante do mar somos todos argonautas. Eu amo o mar com um amor sem limites e sem freios. Minha paixão imorredoura por ele resta encravada dentro de mim de uma maneira indelével, definitiva. E desse amor inextinguível não posso, não consigo e nem desejo libertar-me e minha marinha escravidão ignora as cartas de alforria. De há muito, rasguei, joguei no mato, dei sumiço em uma talvez possível, mas indesejada liberdade. Dessa fêmea misteriosa, de segredos indevassáveis, sou um escravo perpétuo, feliz com sua escravidão. Permaneço genuflexo a seus pés numa amorosa servidão absoluta, pronto a cumprir mesmo os seus desejos mais cruéis e aviltantes dessa mulher chamada mar.

Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni) e colunista do Jornal Diário Tribuna.

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