Em meio a essa pandemia do novo Coronavírus a tarde cai e é tão linda, embora a paisagem em minha volta permaneça a mesma, sem atrativos que se possa chamar de especiais. Mas quando digo e escrevo que a tarde está linda não se trata somente de uma prosaica figura de retórica. A verdade é que é assim que meus limitadíssimos sentidos – nesse isolamento social que me foi imposto –, a percebem em meio à confusão geral de Teófilo Otoni.
Parem, por um breve e rapidíssimo instante, tudo o que estão fazendo agora, livrem-se da pressa que os move, ergam a cabeça e olhem o céu. Vejam como ele está vestido de um azul claro, límpido, brilhante como um jeans recém-lavado lá da Laila Confecções. Depois, podem retomar as tarefas habituais do dia a dia. Não, eu não estou ficando louco. Estou tomado por uma tamanha lucidez que chego a me assustar com isso.
A tarde cai e é tão linda, repito. Basta olhar em torno para ver que não estou mentindo, não é mesmo, doutor João Virgilino?
Hoje decidi esquecer todas as corriqueiras preocupações que me afligem, mesmo diante da Covid–19. Portanto, não escreverei uma linha sequer sobre acontecimentos e nem tampouco farei referências aos noticiários eivados de notícias tóxicas sobre essa pandemia.
Tento olhar todas as coisas que me rodeiam com a mais intensa ênfase possível para evitar que se tinjam com as cores da tristeza. Chega de empregar as palavras a serviço do tédio, do triste, do amargor, da desesperança. Com palavras não se brinca de bandido e mocinho. Algumas têm espírito carnavalesco, mas nem todas.
Quase não percebi, porém já se iniciou o pôr do Sol, desvestindo a noite. Mesmo em sua decadência – como diria o fotógrafo “Paraíba”, a tarde continua linda no que agora lhe resta de beleza. Pena que já não consigo ver o que me cerca com perfeita nitidez. Acesas as luzes da minha residência. Os postes da rua Epaminondas Otoni também rebrilham suas luzes mortiças. Aumenta veloz o fluxo dos carros. Ouço os passos e as vozes das pessoas na calçada. Um casal passa discutindo alto. O que haverá acontecido entre os dois? Talvez algum incidente grave. Quem sabe não brigam por qualquer besteira. Mais tarde, mais calmos, acabarão fazendo as pazes na cama. Ou dormirão de costas um pro outro. Amanhã, se arrependerão do tempo perdido.
“Mudando de pau pra cavaco” – ou seja, mudando de assunto, creio que no momento em que a barra pesa, o bicho pega, o nosso ilusório mundinho desaba tal e qual um castelo de cartas derrubado pelo dedo mindinho de uma criança de colo. Então, mesmo que tentemos disfarçar o tanto quanto podemos, somos tomados pelo desamparo, pelo medo do que nos pode acontecer no presente e no futuro.
Por isso aprendi a amar cada vez mais a vida, porém somente enquanto me valer a pena de ser vivida. Algumas limitações nos meus prazeres até consigo aceitar, desde que não ultrapassem os limites que eu mesmo impus. Eu me conheço. Bem sei até quando e o quanto posso suportar de privações, da ausência dela, de cadeados e grades. Continuo amando a vida, mas dela jamais serei escravo. Tenho o micróbio da liberdade e da escolha ardendo em minhas veias.
Agora a noite caiu. Hoje não quero lembrar da minha juventude lá em Coroaci, remexer no fundo sem fundo dos tempos idos e vividos – alguns deles lá na Vila do Reino ou na Cachoeira. Outro dia, talvez, quem sabe os desígnios das palavras que escrevo. Prefiro restar namorando a noite jovem e bela que nem a tarde que se foi, deixando-me um brilho solar que não se apagou ainda
Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni) e colunista do Jornal Diário Tribuna.