Contra o viver domesticado

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José Carlos Freire. Professor da UFVJM, Campus
de Teófilo Otoni/MG

A leitura do romance A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector, publicado em 1964, permite uma experiência fascinante. O texto inovador para os padrões tradicionais da narrativa tem cunho filosófico e é narrado em primeira pessoa, algo que já se esboçava em nossa literatura de então, mas não de forma ostensiva. Evidentemente, é preciso que, ao iniciar G.H., o leitor aceite acompanhar o movimento da protagonista.

O enredo é relativamente simples: após dispensar Janair, G.H. decide fazer uma faxina no quarto da empregada. Imaginando que estivesse sujo e mal cuidado, surpreende-se com a organização e a limpeza. A pintura em carvão na parede faz com que G.H. inicie seu processo de reflexão sobre si mesma: Quem era a empregada? Ou melhor: como ela, G.H., era vista por Janair, a quem sequer observara durante todo o tempo que permaneceu em sua casa? Pode alguém conviver com outra pessoa sem notá-la?

Na sequência, resolve abrir o armário e depara-se com uma barata. Assustada, fecha a porta, prendendo o inseto que fica com a metade do corpo para fora. A longa agonia da barata, apresentada com detalhes, é acompanhada da também agônica reflexão da narradora. Aquele inseto nojento, do qual vaza aos poucos a “massa branca”, detona um processo de desconstrução da protagonista que sairá transformada de tal encontro. Mas o que de fato se passou entre G.H. e a barata? Deixarei como lição de casa ao leitor. Uma sugestão apenas: não desista no primeiro desconforto que a leitura lhe provocar.

Sem querer estragar a experiência de quem acompanhará G.H. pela primeira vez, o que pode ser dito desse romance singular? Muita coisa. Diversas interpretações são possíveis – e não se trata de subterfúgio retórico. Há quem o leia pela chave psicanalítica; há aqueles que tomam o caminho da antropologia; outros destacam a relação social entre a patroa branca e rica e a empregada negra e pobre; outros, ainda, leem o romance como texto místico.

Entre as muitas escolhas interpretativas possíveis, faço a minha: G.H é uma defesa da vida não domesticada. Há uma imagem curiosa no livro que é fundamental: a terceira perna. A protagonista nos avisa que o encontro com a barata a fizera perder essa “perna”, símbolo de tudo aquilo que nos faz caminhar aparentemente seguros pela vida, mas que, se retirado de nós, ficamos sem chão, sem o apoio: “Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais”. Notem: parecia essencial. Eis o ponto. Teríamos a coragem de definir aquilo que na nossa vida nos parece essencial, mas de fato, não é? Não é nada fácil… Tanto que a protagonista nos adverte: “É difícil perder-se”.

A infância é uma referência nos textos de Clarice. Por isso G.H. se interroga: “Foi como adulto então, que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?”. O fato é que, aferrada à imagem que havia feito de si mesma, G.H. se tornara vazia: “O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar”. Medo de andar com as próprias pernas. Medo da liberdade.

O antigo edifício sólido da vida de G.H. fora ao chão: “No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas”. Mas, perguntará o leitor, tudo isso apenas a partir do encontro com uma simples barata? Ora, em Clarice o cotidiano é cheio de acontecimentos intensos. O nome disso é “epifania”. Um termo que vem da filosofia antiga e que se aplica bem aos textos da escritora, como enfatizam muitos de seus estudiosos. Epifania é revelação. Um fato singular pode nos levar a repensar tudo.

O leitor insistente dirá: Para quê? É simples: para nos fazer perceber o instante: “O que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado ‘já’. Hoje me exige hoje mesmo.” O efeito da epifania é nos tirar do piloto automático: “Era já. Pela primeira vez na minha vida tratava- -se plenamente de agora”.

Mas o instante é, por vezes, desprovido de grandiosidade. Ansiamos por algo que nos eleve, que nos transporte ao fantástico, ao sobrenatural se possível! Buscamos o “acréscimo” das coisas, das situações, da vida mesma. Não raro, trocamos o real pelo fantasioso. De novo a filósofa-escritora nos adverte: “Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas

era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto. (…) Será preciso ‘purificar-me’ muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos”. A propósito, cá entre nós: não seriam nossos perfis de rede social, muitas vezes, uma espécie de “acréscimo” do que de fato somos?

A quebra do “invólucro” em que G.H. se situava a remete à vida mesma. Mas seria isso uma busca meramente interior, um processo de retorno a si em busca de uma felicidade solitária? Não me parece. Embora os manuais insistam em colocar a obra de Clarice como intimista, o que salta de seus textos é sempre uma provocação que vem do outro. Este outro pode ser um objeto, um animal ou uma pessoa. Não percamos de vista que, antes do encontro com a barata, houve a figura de Janair. A empregada invisível que enxergava G.H. quando esta sequer se enxergava. Janair, a que tem nome; “G.H.”, um sujeito indeterminado.

O que nos torna sós é a nossa impressão de autossuficiência. Desmoronado o edifício, a mulher que antes pensava se bastar, agora reconhece sua sede de vida, a vontade de sair de si. Simbolizando o processo de morte- -vida, G.H. compara o episódio com uma travessia: “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo”.

Deixar morrer algo de velho para nascer algo novo. Daí o título da obra, que tem menos a ver com sentimento amoroso e mais com a dinâmica da vida: “A condição humana é a paixão de Cristo”. Nesta analogia, o quarto da empregada é o túmulo onde G.H. esteve para que ali morresse uma vida superficial e pudesse brotar algo de autêntico, que dispense uma “terceira perna”.

Qual seria o ponto almejado? Talvez quando possamos dizer como G.H.: “a vida se me é”. Um renascimento constante. Rumo a um estágio mágico? Não. De novo: sem acréscimos. Assim, olhando tudo como se fosse a primeira vez, tal como as crianças, quem sabe possamos fazer do efêmero algo grandioso. E aprenderemos da G.H. renascida: “O divino para mim é o real”.

Sugestão de leitura: “A paixão segundo G.H. (1964)”, de Clarice Lispector. Publicado pela Editora do Autor. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com

4 COMENTÁRIOS

  1. Obrigada pela sugestão de leitura e pela reflexão.
    A radicalidade desse momento imposta pela pandemia do coronavírus de fato me faz perceber que é preciso ter coragem para perceber o que é realmente essencial para nosso projeto de vida e o que podemos abrir mão. Grande abraço!

    • Olá Volneida! Muito obrigado pela mensagem. Realmente! A situação atual nos faz refletir de modo muito intenso. E nos faz refletir muito.
      Abração!

  2. Análise que tira do livro seu diálogo com o chão: a relação com o outro. A Clarice através do inexpressivo ( o qual consegue captar com a palavra), expressa e oferece a chave para qualquer porta trancada. O susto e o maravilhamento são únicos nesse livro que dialoga com outro título da autora que é o livro “Água Viva”. Setenta e poucas paginas de pura epifania, meditação, o que quisermos chamar que tenha em si a palavra vida!

    Gratidão, José Carlos, por enriquecer ainda mais a obra!

    • Olá Igor! Que bacana sua mensagem. Eu vou seguir sua sugestão de partir para o Água Viva.
      Eu é que agradeço por partilha!
      Abraço.

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