Laços que unem e aprisionam

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José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de
Teófilo Otoni/MG

Laços de Família é um livro de contos de Clarice Lispector, publicado em 1960 pela editora Francisco Alves. A autora trabalha com elementos característicos da sua obra como o estranhamento e a epifania, adolescentes e suas crises, além da costumeira presença de animais.

Engana-se, no entanto, quem considera que Clarice queira falar apenas de galinhas, búfalos e cachorros. Os encontros com animais em seus escritos são, via de regra, condições para estudos sobre pessoas. Assim, a protagonista de “Uma galinha”, que de virtual prato de domingo torna-se a rainha do lar, é analisada com traços humanos. Por isso, quando Clarice fala sobre uma simples ave, é bom que desconfiemos se ela não quer dizer algo mais sobre os outros personagens.

Do mesmo modo, em “O búfalo”, o insólito encontro de uma visitante de zoológico com o animal funciona como espaço de revelação: “os olhos do búfalo olharam os seus olhos”. Desde quando ela não se via nos olhos de outro ser? De modo semelhante, a relação do protagonista com o cachorro no conto “O crime do professor de matemática”. Por que, afinal, abandonamos quem queremos bem? Medo da companhia? Receio de nos mostrar ao outro?

A transição para a juventude, esse túnel assustador que nos leva ao desconhecido, não deixa de comparecer como tema importante no livro, seja no drama da adolescente que busca se afirmar, sentindo-se rejeitada pela família no conto “Preciosidade”, seja na história de Arthur, em “Começos de uma fortuna”, aficionado à ideia de que o dinheiro lhe fará um homem respeitável.

Há, porém, dois aspectos que se destacam na coletânea de contos: o ambiente familiar como espaço de referência e o protagonismo de mulheres na maioria deles. A família é, marcadamente, da classe média carioca dos anos 1950 e 1960. As mulheres, em geral donas de casa, transitam no seu duplo papel de cuidadora do lar e esposa exemplar. Há, pois, um recorte de gênero e de classe – no caso do conto “A menor mulher do mundo” também étnico-racial. No entanto, podem perfeitamente ser lidos como reflexões sobre a família em geral.

Nesse sentido, os momentos de estranhamento importam não tanto pelo que representam em si, mas pelo que detonam nas protagonistas. Há um desarranjo momentâneo, um descompasso entre o cotidiano e o que se mostra em determinadas situações de intensa percepção. Lançando mão desse dispositivo recorrente nos seus textos, Clarice direciona o foco para o ambiente doméstico e mostra, impiedosamente, o vazio, a solidão e a infelicidade por traz da casca social que toda família projeta.

É assim que em “Mistério em São Cristóvão”, uma cena trivial de roubo de flores no jardim funciona como espelho para que visualizemos o interior da casa, aquela família de “muitos cuidados e de algumas mentiras”. A casa, sacudida pela invasão da propriedade, anseia agora pelo retorno à regularidade. Os pais continuarão fatigados; a avó, temperamental; as crianças, insuportáveis.

O arranjo familiar é desnudado de forma ainda mais crua no incômodo “Feliz aniversário”. A velha senhora de 89 anos, abrigada na casa da única filha promovida a cuidadora, recebe a prole sem entusiasmo. Os visitantes, cada qual a aguentar aquele forçado encontro anual, torcem para que a velha não esbraveje sua insatisfação – o que inevitavelmente acontecerá. Filhos, filha, netos, bisnetos, concunhadas a se engalfinharem, todos insatisfeitos daquela convivência obrigatória, à espera do final, quando, aliviados, descerão a escadaria do velho prédio e, na rua, poderão novamente ser livres. Mas livres de quê? A festa de família: “um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto”.

De maneira menos ácida, mas nem por isso superficial, Clarice explora o convívio familiar no conto que dá título ao livro. Tal como na festa da matriarca, os laços familiares são questionados. Severina visita a filha Catarina, o genro Antônio e o neto. Entre elas, o abismo de décadas de palavras não ditas; entre Severina e Antônio a artificialidade da relação; com o neto “magro e nervoso”, carinhos excessivos que não o agradam. A despedida, a estação de trem, o adeus à velha mãe. E agora? Restará a Catarina ser apenas isso: outra Severina? Ela será com o filho como a mãe fora com ela? Cavará um novo abismo de silêncio ou terá coragem de romper o ciclo? Os laços de família servem para unir ou para aprisionar?

Mas não são apenas consequências desagradáveis que os encontros e desencontros provocam. Há também a beleza. No sensível conto “Amor”, vemos Ana atordoada após se deparar com um homem cego mascando chicletes. A cena banal a faz passar do ponto em que saltaria do bonde. Voltando a pé, atravessa o jardim botânico. É ali que Ana, após anos devotados à família, consegue perceber novamente as árvores, os pássaros e os riachos.

Assim também ocorre com Laura, em “A imitação da rosa”, que está prestes a presentear Carlota com flores. Porém, sentada diante da mesa, Laura percebe que as flores que ela mesma havia comprado são belas, são suas e é ela quem as merece. Além disso, Carlota nem é sua amiga propriamente. Laura se encontra diante de uma questão crucial para a mulher de seu tempo: entre afazeres, cuidados da família, eventos sociais com o marido e tantas outras coisas, quando chegará, finalmente, a sua vez?

Os contos de “Laços de Família”, nos oferecem muita coisa para pensar ainda hoje, como há sessenta anos ofereciam aos leitores de então. A família como espaço sem idealizações, lugar também de infelicidade. Mulheres sob o jugo do casamento, dos costumes e das normas sociais. Porém, sempre a um passo de experimentar a transgressão e, ainda que por um instante, sentir a vida lhes correr pelas veias de um modo intenso, real e assustador.

Ilustração: Vinícius Figueiredo. Sugestão de leitura: “Laços de Família” (1960), de Clarice Lispector. Publicado pela Ed. Francisco Alves. Disponível em PDF na internet. Contato: freire. jose@hotmail.com

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