Crônica de uma Justiça Injusta

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Jeferson Botelho Pereira – Professor de Direito Penal
e Processo Penal. Especialização em Combate à
corrupção, Antiterrorismo e combate ao crime
organizado pela Universidade de Salamanca – Espanha.
Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade
Unida de Vitória/ES. Advogado e autor de obras
jurídicas. Palestrante.

A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta (Rui Barbosa)

Numa madrugada de sexta-feira, em 2013, o cenário de luz, ações e emoções, palco de uma bela cidade do interior de Minas Gerais. Com um jogo de juridicidade e poesia, pretende-se historiar a essência de um conto, dramático e assustador, traduzido com extrema leveza, brisa da natureza, ternura de um coração arrebatado, paixão desenfreada, tudo isso para não aborrecer os fanáticos corporativo-institucionalistas.

Chovia torrencialmente, uma forte tempestade varria a alma de injustiça, formou-se uma enxurrada, ventos fortes, muitos trovões, relâmpagos intermitentes riscavam os céus da cidade, princesa do Vale do Mucuri.

A madrugada fria, a cidade adormecida, noite sem luar, a chuva intensa, inundação dos campos, do riacho que atravessa o bairro, do outro lado as Acácias das pedras preciosas, águas marinhas, ametistas, topázio, berilo, turmalina, crisólita, nada de brilho, portanto, incapazes de iluminar aquela noite de profunda escuridão, a capital do amor fraterno exalava o néctar da violência, paradoxalmente, nem um sopro de paz, nem uma centelha de luz, nem um breve colorido de arrebol, nem mesmo a luz de um vaga-lume a clarear a ignorância e os descasos sociais.

Enquanto tudo isso acontecia, sem pombos para servir milhos, e sem bichos-preguiças na Praça, uma guarnição de abnegados e bravos policiais deslocava para a região leste da cidade a procura de um empregado de um clube tradicional da cidade.

Calma! O homem procurado era apenas um trabalhador e pai de família, e aqui era relacionado como vítima de um crime patrimonial.

Criminosos, chamados por alguns de vítimas da sociedade, haviam invadido o clube, levaram duas valiosas e preciosas grades de cerveja e evadiram-se do local logo em seguida, tomando rumo ignoto.

Após palmilhadas buscas, zelo e compromisso ético, envidados denodados esforços, os policiais lograram êxito em prender os criminosos, com grande galhardia desses policiais, cujos passos desses heróis são faróis, que segurança nos dão e razão.

A res furtiva foi recuperada, garrafas ainda cheias com o liquido entorpecente, e assim, o fato precisava ser registrado, para o prosseguimento da persecução criminal, punição dos delinquentes, e restabelecimento da paz social.

Afinal de contas, um pacto social foi rompido, os recalcitrantes necessitavam de uma exemplar punição. Tudo isso para atender uma das finalidades da pena, a sua coação social, a função intimidatória.

Talvez uma cronologia do tempo, uma espécie de linha do tempo para entender o quão inútil o sistema de justiça do Brasil, morosa, dispendiosa e ineficaz.

Se os policiais tomaram conhecimento do fato, quase que 100% alguém aciona o serviço de utilidade pública, sendo certo que no Centro de Operações, quatro ou cinco agentes públicos prestavam serviço público, uns coordenando, outros despachando e outros no atendimento ao público.

Também é correto afirmar que de serviço nas ruas e avenidas, sempre vigilantes, outros tantos, policiais, heróis anônimos, prontos para o deslocamento, dando a vida se preciso for em nome da sociedade.

Recebido o comunicado, iniciaram-se os rastreamentos para a localização dos larápios, escarnecedores do povo, protegidos por uma minoria antissocial, canalhocrata social, sanguessugas da maldade.

Localizados, presos, com adoção de todas as normas legais, inclusive, obediência a normas de organismos internacionais, afinal de contas, há sempre alguém de plantão exigindo adoção dos protocolos dos direitos humanos, claro, que isso é sempre bom, pois no estágio atual, da evolução humana e obediência estrita aos cânones humanitários, Polícia é sempre imprescindível, está para a sociedade, como oxigênio para a vida.

Agora, os criminosos são recambiados para uma Delegacia de Polícia de plantão, onde se encontram de serviço Delegados de Polícia, peritos criminais, médicos legistas, escrivães e investigadores de polícia. Havendo elementos suficientes de autoria e prova da materialidade do crime, os criminosos, esses malfeitores são autuados em flagrante, art. 302 do CPP e encaminhados a um presídio, tudo bancado pelo Estado, com toda assistência jurídica, social, religiosa, material, saúde, art. 11 da Lei nº 7.210/84, ficando custodiados sob responsabilidade da eficiente Polícia Penal.

As investigações são concluídas na forma dos artigos 4º usque a 23 do CPP, e o resultado de todo conteúdo probatório, encaminhando ao Ministério Público.

Havendo elementos de prova, os criminosos são denunciados, art. 41 do Código de Processo Penal, passando agora para o crivo do Poder Judiciário que recebe a denúncia e agenda a audiência de instrução e julgamento. Sendo pobres em sentido legal, a Defensoria Pública entra em cena na disputa da contenda jurídica, na intransigente defesa dos meliantes ou atuando como custus vulnerabilis.

O ponto de partida agora é a tentativa de destruir e desconstituir as provas produzidas cuidadosamente pela Polícia. Agora toda Polícia é rotulada de truculenta, as provas foram forjadas, aprontaram javanesa, o Estado não sabe investigar, toda sorte de acusações irresponsáveis, querendo atribuir crimes a Polícia, uma espécie de denunciações criminosas.

Numa tarde de setembro de 2021, aquele jovem empregado do Clube, aquele mesmo que havia recebido os policiais naquela madrugada chuvosa, é novamente intimado, agora pelo Sistema de Justiça Criminal para prestar depoimento no processo, claro não sabia de nada, coitado, nem mesmo a direção do assovio do grilo.

No momento do fato estava descansando em sua casa depois de uma longa jornada de trabalho esse jovem trabalhador chega ao fórum, certamente colocando a melhor roupa, cheirando a naftalina, tudo isso para ir contribuir com a Justiça, mas estava com capacete nas mãos, é obrigado a sair da Casa da Justiça e deixar o acessório de segurança bem longe do Palácio da Justiça.

Retornando ao Palácio da Justiça, esse humilde trabalhador é orientado a exibir sua identidade num visor de computador para o reconhecimento eletrônico, coisa da modernidade. É claro, não sabia de nada, estava dormindo em casa no dia dos fatos, e naquela audiência, oito anos depois, o que se assistia é uma grave violação dos direitos fundamentais do cidadão, que tem direito a um processo célere, rápido, sem demoras, o decantado acesso à justiça preconizado por Mauro Cappelletti, conforme plasmado no artigo 5º, inciso LXXVIII, da CF/88.

Ainda não se tem o resultado final do devido processo legal, art. 5º, LIV, da CF/88, no lumiar da primavera de setembro de 2021, se condenados ou absolvidos, mas é possível arriscar um prognóstico de resultado final. Assim, pelo menos mais seis anos para operar a extinção da punibilidade ou pleno cumprimento da pretensão executória estatal. Outrossim, não se sabe o quanto a sociedade vai gastar ainda com a condenação sem prisão dos desalmados criminosos, é claro, mas teremos que recolher mais impostos para sustentar a prestação de justiça, injusta, tudo bem, mas essa é a lógica de um país da impunidade, onde a Suprema Corte decide tudo com uma mera canetada ideológica.

Mas uma via alternativa pode ser utilizada para minimizar os horrores da justiça. Assim, na sentença final, pode o juiz de direito reconhecer o princípio da insignificância, afastar a incidência do crime por ausência de um dos seus elementos, o fato típico, construção doutrinária e jurisprudencial, hipótese prevista no artigo 28, § 1º do Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, prevendo não haver o fato crime quando verificar cumulativamente a presença das condições, da mínima ofensividade da conduta do agente, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento do agente e inexpressividade da lesão jurídica provocada, aplicando o artigo 386, III, do CPP. Nessa hipótese resta se desculpar com a sociedade por tamanha ineficiência.

Apenas uma certeza irrefutável. Até aqui já se gastaram mais de 260 mil reais com os atores e artistas de cinema atuantes neste Filme de terror, 30 mil no Centro de Operações, 15 mil na Viatura Policial, 35 mil na Unidade Policial, 70 mil no Ministério Público, 20 mil na Defensoria Pública, 80 mil no Poder Judiciário e 10 mil na Penitenciária, um absurdo social, uma justiça inútil, arrogante e sem futuro.

Outra certeza, inexoravelmente as duas grades de cerveja, objeto material do ilícito, crime essencialmente doloso, instantâneo, monossubjetivo, plurissubsistente, crime material, que se consuma na forma do entendimento da Súmula 582 do STJ, consoante a teoria da amotio ou apreehensio, bastando a inversão da posse do bem para que se consume o crime de furto, ainda que por curto período de tempo, sendo prescindível a posse mansa e pacífica, foram imediatamente doadas a consumidores especiais e exigentes naquela mesma madrugada de tempestade para que alguém usufruísse do líquido da delinquência, da maldade, mas que não enebriasse aponto de suprimir a razão e o discernimento para continuar fazendo assepsia social e zelando para paz da cidade, enquanto isso, o Brasil agonizando lentamente, deitado eternamente em berços esplêndidos, e um monte de gente humilde, indefesa, moribunda, assistindo de camarote as vicissitudes de um sistema de Justiça cruzeirada, de série B, disfuncional, ativista e arrogante.

Pode-se arrematar a presente crônica, lembrando os ensinamentos do excelso Professor Mário Moacyr Porto (in Estética do Direito, RT: v. 511, Nov., 1980).

“A casa do direito, como a casa de Deus, tem muitas moradias. Mas não há lugar, em nenhuma delas, para os medíocres de vontade e fracos de coração”.

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