Staring é crime?

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Jeferson Botelho Pereira – Professor de Direito Penal e Processo
Penal. Especialização em Combate à corrupção, Antiterrorismo e
combate ao crime organizado pela Universidade de Salamanca –
Espanha. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida
de Vitória/ES. Advogado e autor de obras jurídicas. Palestrante.

RESUMO: Este texto tem por finalidade precípua analisar a conduta de staring, uma novíssima discussão social e jurídica da possibilidade da configuração de crime o fato de encarar uma pessoa com um olhar profundo e contínuo com o fim de obter vantagem ou favores sexuais.

Palavras-Chave: Staring; encarar; olhar; continuidade; crime; impossibilidade.

A vida é mesmo essencialmente dinâmica, uma verdadeira caixinha de surpresas, quando se acorda no dia seguinte, haverá sempre um risco de um grande acontecimento imprevisível, sendo certo que a vida é muito mais rica que a previsibilidade normativa. A todo o momento uma nova onda se levanta tão forte que atinge as bordas da terra de Nova Viçosa, e logo gira uma nova discussão na sociedade.

Agora essa nova onda é a possibilidade de se enquadrar como crime a prática de Staring, palavra que significa encarar, e, portanto, estão discutindo se o enquadramento visual agora é crime ou não, se agora é possível colocar uma bitola na cara para se evitar olhares indesejáveis. Se o Estado deve lançar campanhas preventivas para prevenir olhares penetrantes, se a polícia agora pode fazer reconstituição de olhares profundos, se a partir de agora a Polícia pode colocar câmeras de monitoração eletrônica de olhares nos veículos de transportes coletivos.

A origem da discussão da encarada vem da Inglaterra, que começou a lançar cartazes nos metrôs alertando sobre o possível crime de assédio o fato de alguém fixar os olhos para uma pessoa e encará-la com olhar fixo e contínuo. Segundo anunciado no cartaz no metrô de Londres, “olhar fixamente de maneira invasiva e sexual é assédio sexual e não é tolerável”.

Destarte, este comportamento em especial ganhou destaque nos cartazes da campanha britânica: o staring, que pode ser traduzido como um olhar intenso, insistente e intrusivo. Na maioria das vezes, a mulher sai de perto, troca de lugar. Nem sequer percebe que foi vítima de assédio.

No Brasil, o crime de assédio sexual é previsto no artigo 216-A, do Código Penal, com nova redação determinada pela Lei nº 10.224, de 2001, consistente na conduta de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, com pena de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.

A meu sentir, por mais que o suposto autor possa encarar a vítima de forma contínua e insistente, a ponto de lhe causar um constrangimento, difícil traduzir a finalidade do olhar do autor de se buscar um favor sexual.

Daqui a pouco nem se pode cantar a música “olhos nos olhos”, na voz de Maria Betânia:

“(…) Quando você me deixou, meu bem. Me disse pra ser feliz e passar bem. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci. Mas depois, como era de costume, obedeci. Quando você me quiser rever. Já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos no olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais. E que venho até remoçando. Me pego cantando. Sem mais nem porquê. E tantas águas rolaram. Quantos homens me amaram. Bem mais e melhor que você (…)”

Como se percebe para a configuração do crime de assédio deve-se provar a conduta capaz de provocar constrangimentos indesejáveis e o autor deve possuir superioridade hierárquica ou ascendência laboral em relação à vítima do delito em apreço. São elementares exigíveis para a configuração do crime em espécie, de forma que será preciso perquirir se na hipótese há a presença dessas elementares tendentes à configuração do delito em apreço.

Não há o que se falar também em crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do Código Penal, consistente em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda, com pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa.

A previsão de pena de um ano de prisão por si só já desconfiguraria o crime pelo princípio da proporcionalidade.

Claro que logo vai aparecer um parlamentar midiático a procura de prestígio social, um caçador de holofotes, fazendo proposta de apresentação de projeto de lei para tipificar a conduta de constranger alguém com olhar contínuo e permanente com a finalidade de obter vantagem ou favorecimento sexual em lugares públicos, ou aberto ou exposto ao público.

E quando isso for aprovado, quando essa coisa esdrúxula ingressar em nosso ordenamento jurídico, caberá à Polícia produzir as provas da autoria e da materialidade do crime. A Polícia comprovar se o olhar foi 43, aquele assim, meio de lado, ou se foi um olhar 86, aquele todo cheio, dos dois lados, como bem retratado na música Olhar 43, in verbis:

“(…) Seu corpo é fruto proibido
É a chave de todo pecado e da libido
E pra um garoto introvertido como eu
É a pura perdição

É um lago negro o seu olhar
É água turva de beber, se envenenar
Nas suas curvas derrapar, sair da estrada
E morrer no mar, no mar

É perigoso o seu sorriso
É um sorriso, assim, jocoso, impreciso
Diria misterioso, indecifrável
Riso de mulher.

E pra você eu deixo apenas
Meu olhar 43
Aquele assim, meio de lado
Já saindo, indo embora
Louco por vocês (pequena)
Que desperdício
(Tesão) “

Pare o mundo que eu quero descer, que eu não aguento mais
esperar o Cruzeiro ganhar o campeonato ou sair da série B, e ver no rosto das pessoas a mesma expressão de ascensorista de elevador mal remunerado, pare o mundo que eu quero descer.

Como bem chamava a atenção o pai do humanismo no mundo Francesco Petrarca, quanto mais conheço o mundo, menos gosto dele. Difícil conviver com as idiotices do dia a dia, um mundo de narcisista de plantão. Daqui a pouco vão querer tipificar como crime o ar que respiramos além da conta que necessitamos para sobreviver, daqui a pouco vão querer enquadrar como crime as palpitações do coração, porque capazes de perturbar a tranquilidade alheia, porque com potencialidade para molestar o sossego de alguém, este mundo imundo de cabotinos idiotas a procura de luzes e famas sociais.

Por fim, o que se constata é uma clara tentativa de se colocar telas nos olhares das pessoas, uma espécie de filtro da pureza ou da maldade no olhar das pessoas, talvez fosse necessário filtrar o pensamento das pessoas para se saber o que pensam, o que querem ou o que desejam da vida, talvez fosse preciso mensurar a intenção do olhar, aliado com a capacidade de avaliar qualitativamente o pensamento da maldade para aquilatar o seu nefasto grau de perversidade intrínseca que habita o coração da humanidade, talvez fosse necessário passar por um oftalmologista para verificar a idoneidade do olhar, pois aquele olhar ofuscado por deficiência visual pode ser incapaz de ofender bens jurídicos por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, e desta forma, ser impossível consumar-se o crime, sendo, portanto, crime impossível conforme leitura do artigo 17 do Código Penal Brasileiro.

Limitar o olhar das pessoas é desmazelo, é ato arbitrário e boçal, sendo certo que o olhar pode esconder a meiguice do amor, o néctar da ternura, um olhar pode revelar sintomas de tristezas, de sofrimento, de angústias, pode revelar a sensibilidade humana, a carência, mas pode homiziar a inveja, o ódio, o desamor, um olhar pode traduzir a mais profunda forma do amor sincero, do desejo lírico, mas pode revelar o apodrecimento do ser humano, a perfídia, a maldade que habita no coração de algozes sociais, de genocidas da humanidade.

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