Tempos de Carestia

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

“Aperta o nó da carestia, aperta tudo pra fazer economia”. O sábio refrão da cantiga de domínio público resume nosso contexto brasileiro de 2022. Mas será que é apenas o momento atual que impõe essa lógica? Esse é um dos grandes desafios que temos: dar conta da urgência do tempo presente, compreendendo-o como parte de um processo de longa duração.

O leitor e a leitora que são mais jovens podem, por exemplo, investigar com as pessoas mais velhas o que foi a segunda metade da década de 1980. Era comum que, durante uma compra no mercado de meia hora, produtos mudassem de preço por causa da inflação galopante. E se puxar a memória de gerações mais velhas, teremos os anos 1970, os anos 1930 e aí vamos.

No final de 2021 a Rede Brasileira de Pesquisa que trata de segurança alimentar (Penssan) estimava em 19 milhões o número de pessoas em situação de fome no Brasil. Dados mais recentes de outras fontes de pesquisa mostram que o número de pessoas que não tiveram dinheiro em algum momento da pandemia para alimentar a si e a suas famílias chegou à casa dos 70 milhões.

Eis, portanto, um traço dramático de nosso país: desde o período Colonial, atravessando breves ciclos de maior acesso das camadas populares a condições minimamente dignas de vida, a fome sempre esteve presente. Para usar uma formulação um tanto gasta, mas que infelizmente não perdeu a validade com o tempo: um território com tantos recursos naturais e enorme potencial de produção de alimentos sempre se constituiu como exportador de matéria-prima, relegando a população pobre que nele vive à escassez e à miséria. Da Colônia o Império, dele à República, mudamos o penteado, mas não o cabelo. Exportamos hoje carne, milho, soja e outros produtos em quantidade assombrosa no mesmo instante em que a cesta no mercado e a panela se esvaziam cada vez mais para quem trabalha.

Mas onde há insistência, há também resistência. Para dar três exemplos rápidos, em 1946, Josué de Castro, intelectual e político conhecido pelo seu engajamento em questões sociais, publicava “Geografia da fome”, livro importantíssimo por combater o entendimento de que a fome seria algo natural e incontornável, apontando suas causas sociais. Seu livro mostrava de modo contundente que a fome na sociedade é algo que se combate e se resolve.

Outro exemplo foi o Movimento do Custo de Vida (MCV), liderado por mulheres da periferia de São Paulo no combate à carestia e que, nos anos 1970, confrontou o mito de que a Ditadura imposta no país estava resolvendo nossos problemas. Por fim, já nos anos 1990, tivemos a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, tendo à frente o sociólogo Herbert de Souza. Betinho, como ficou conhecido, resumiu em uma frase uma verdade inquestionável: “Quem tem fome tem pressa”.

Muitos seriam os exemplos de iniciativas públicas e populares de combate à fome em nossa história recente. Mas esses três são suficientes para nos fazer pensar algo crucial: onde foi parar o tema da fome em nossas discussões cotidianas? Estamos, cada qual, totalmente tomados por nossos desafios particulares de sobrevivência a ponto de não notarmos mais uma calamidade social? Aceitamos, sem mais, o lema do “salve-se quem puder”? Não sei. Espero que não. Resta saber que soluções são possíveis. O que é necessário fazer para que o Brasil mobilize, como dizia a Carta da Ação da Cidadania de Betinho, “todas as suas energias para colocar um fim à miséria”?

É sabido que não estamos sós na tragédia, já que a desigualdade social não é privilégio nosso. Com dados do primeiro semestre de 2022 de organismos internacionais, estima-se que as dez personalidades mais ricas do mundo possuem a riqueza equivalente ao conjunto de mais de três bilhões de pessoas. Quase a metade da população mundial! Mas queria voltar ao Brasil e, nesse caso, recusar aqui a saída fácil, comum em ano de eleição, de dizer que devemos escolher bem nossos representantes. Está certíssimo, mas é insuficiente, penso. O que me assusta é a estranha sensação de passividade geral da sociedade brasileira com o sofrimento de uma parcela gigantesca da sua população que sobrevive a duras penas. Teríamos voltado àquela noção de naturalização da fome que Josué de Castro e outros tantos combateram?

Para que pensemos a sério sobre isso, deixo um pouco de lado os dados econômicos e sociais para apelar a algo que, pelo menos aparentemente, toca mais diretamente nosso comportamento e nossa visão de mundo. Refiro-me à formação cultural cristã, o que tem sido tão salientado por setores conservadores nos últimos anos. É milenar o engajamento de cristãos e cristãs no auxílio aos necessitados. A propósito, as primeiras comunidades eram reconhecidas pela partilha dos bens entre seus membros e é clássica a formulação bíblica de que “não havia necessitado entre eles”. E não só isso: há também nas formulações teóricas de importantes pensadores a indicação de que elementos de injustiça devam ser combatidos por fidelidade a valores cristãos. O filósofo medieval Tomás de Aquino, por exemplo, defendia que a ira – naquele contexto facilmente tomada como um pecado – deveria ser aceita quando se direcionasse contra situações injustas. Essa ira “por zelo”, em seus termos, não só era aceitável como digna de aprovação.

Ora, como pode um país de maioria cristã como o nosso, no qual católicos e evangélicos disputam a liderança estatística de números de fiéis, aceitar a fome sem mais? Por que não disputam também quem defende mais os pobres? Onde foram parar os princípios de solidariedade e compaixão?

É certo que pensadores e militantes cristãos da Teologia da Libertação, no campo católico, ou da Teologia da Missão Integral, no campo evangélico, continuam suas lutas dia a dia nas comunidades e têm contribuído para que o óbvio não seja esquecido. Esse senso de justiça social de inspiração religiosa se conjuga com as noções de direitos humanos e cidadania. Limitados que sejam tais referenciais, são melhores que a aceitação da miséria. Caminhos, termos, conceitos apropriados, tudo isso podemos e devemos discutir com tempo. O que não pode esperar é a urgência de quem padece. Se a fé cristã é algo tão valioso para a maioria do povo brasileiro, como se apregoa, que seu reflexo na defesa da justiça se apresente urgentemente. Afinal, quem tem fome tem pressa. (Ilustração: Vinícius Figueiredo).

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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