Os outros

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Há cenas que desejaríamos não ter assistido. Um lugar errado na hora errada, um evento constrangedor. É desagradável. Lembro-me da primeira vez que fui a São Paulo e, extasiado pela imensidão daquele lugar, tomava um lanche na Praça da Sé quando, sem querer, acabei por contemplar uma agressiva abordagem policial feita a um homem embriagado. Já se vão mais de vinte anos e a imagem não se apaga da mente.

Outro dia passei por algo desconcertante, ainda que com muito menos violência. Costumo dar uma volta no entorno da escolinha de futebol do meu filho enquanto espero a aula. Já dobrava a esquina quando me vi a poucos metros de uma discussão entre vizinhos. O assunto era o lixo na calçada e descontavam em um dos moradores que ali não estava toda a sua raiva compartilhada. Era um simbólico tribunal de inquisição, sem direito à apelação. “A gente faz o que é certo, o problema é que os outros atrapalham!”, sentenciou um deles. Não podendo voltar, só me restou baixar a cabeça e apertar o passo para sair logo daquele campo de irradiação de nervos.

Os outros. Foi um gatilho que me remonta aos primeiros anos de professor. Recém saído da graduação em filosofia, o desejo era de retirar todas as pessoas da caverna para a luz do conhecimento como fizera Sócrates na Grécia Antiga. Mas professores novos, de qualquer área, além de acreditar que possuem super poderes, costumam, invariavelmente, cometer alguns vacilos. E os de filosofia acabam, muitas vezes, acreditando que o choque de ideias é o melhor caminho para despertar a consciência crítica. Por vezes isso equivale a soltar um elefante numa loja de cristal. Hoje, mais vivido, penso diferente.

O fato se deu nos meus tempos de Belo Horizonte em uma aula de Filosofia do Direito em uma faculdade de Brumadinho – sem saber que aquela cidade ficaria conhecida nacionalmente anos depois de forma trágica. Não me recordo qual o tema propriamente, mas sei que o debate estava morno quando uma das alunas levantou algo sobre o estranhamento que as pessoas têm diante de quem discorda de uma ideia ou possui opiniões diferentes. Os outros. Era a questão central do seu argumento.

Aí o ímpeto de professor novo veio à tona e joguei no ar a provocação: “É como diz o filósofo Sartre, o inferno são os outros”. Salvei a aula. Uma explosão! Seguiu-se uma sequência de depoimentos de incompreensões sofridas, de diferenças familiares, etc. Mais de meia hora e eu converteria todo mundo ao existencialismo! Mal deu tempo, ao final da aula, de explicar que essa frase de Jean-Paul Sartre está numa peça de teatro que discute a necessidade que temos de convívio. As cenas se passam em um quarto fechado e sem espelhos, representando o inferno, e os três personagens se veem obrigados a ouvir uns aos outros eternamente. Tempo esgotado, bolsas agitadas, a aula já era. Dei o caso por encerrado.

Ao final do semestre aquela aluna me procurou para dizer que havia repassado a minha ideia ao seu avô. “A frase não é minha, é de Sartre”, argumentei já prevendo o estrago. “Sim!”, continuou, “É que meu avô é muito ranzinza e reclama de todo mundo. Então falei pra ele daquele lance, sabe, que os outros são o inferno e ele gostou demais!”. E lá fui eu reforçar que a ideia da peça não é a de fomentar a intolerância ou coisa do tipo, mas sim a necessidade que temos das relações sociais; que ninguém é uma ilha e tal. Tarde demais. O avô não só continuava ranzinza como agora havia encontrado na neta um apoio para suas ideias e, na filosofia, uma comprovação!

“A gente faz o que é certo, o problema é que os outros atrapalham!”, aquela frase ressoava na cabeça enquanto caminhava de volta à escolinha de futebol. Não é verdade. Pelo menos, não toda a verdade. Nem sempre fazemos o certo e nem sempre os outros atrapalham. E mais: os outros são exatamente os não-eu, aquelas pessoas diferentes de mim; mas se eu mudo o ponto de observação para outra pessoa, então eu estarei no grupo dos outros. Eu sou o outro dos outros. Seríamos, então, todos, o inferno de todos?

É curiosa a peça de Sartre. Hoje não jogaria, sem mediação alguma, aquela frase de efeito na sala de primeiro ano de graduação com jovens que ainda construíam suas identidades na diferença com pais, família e todos… os outros. Na peça, o inferno não aparece como um local terrível de dores atrozes e fogo por todos os lados como nos retratos medievais ou como se apresenta na teologia cristã tradicional. Ele é, na verdade, um estado de coisas, uma ausência, um vazio, uma ocasião de intensa reflexão.

Nesse sentido, é sugestiva a discussão dos personagens que acaba por revelar o caráter de cada um, suas fraquezas e seus medos. Isso porque, se refletirmos a partir do enredo, o outro me enxerga, por vezes, mais do que eu a mim mesmo. Na ausência de espelhos no quarto retratado na peça, cada personagem só consegue se ver pelos olhos dos outros. O outro é uma figura que me desinstala, obriga-me a romper as máscaras. O outro me instiga a ver o que de fato sou.

Um mundo sem os outros, para lembrar a discussão dos vizinhos sobre o lixo fora do lugar, não seria a perfeição. Deus me livre! Imagina um mundo em que não haja os outros?! Ou, seria a minha total solidão, ou então um convívio com infinitos “eus”. Seria insuportável. Portanto, há uma dualidade na peça de Sartre: por um lado, os outros são fator de meu desconforto, o meu inferno; por outro lado são também a condição para que eu seja quem sou ou ao menos busque ser o que entendo que seja. O inferno, nesse sentido, não é tão ruim. O sofrimento que o outro me causa, dentro de limites aceitáveis, evidentemente, não só pode ser redimensionado como também serve para que eu, que sou o outro do outro, seja mais livre, isto é, um outro melhor.

Ao pegar meu filho no futebol perguntei sobre como foi o jogo. E ele me disse, desapontado, que não havia marcado nenhum gol porque os colegas não passavam a bola. Disse a ele que precisava conversar com os colegas na próxima vez, porque esporte é coletivo, é um trabalho em equipe. Ele concordou. Seria a hora perfeita para eu dizer: “Futebol é bom, o que atrapalha são os outros!”. Mas não, não era. Seguimos para casa em silêncio.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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