De que eu me lembre, quando eu era criança lá em Coroaci, não havia ainda o Dia da Criança tal como existe hoje, depois que cresci. Também não tinha shopping center, videogame, hambúrguer, Disneylândia e outros badulaques que fazem a festa da meninada de agora. Tinha televisão em preto e branco, quando eu era criança, imaginem vocês. Como me disse Marlene [leia-se Salão Requinte] – uma das melhores escultoras de estruturas capilares femininas dessas plagas do Nordeste mineiro – “naquele tempo, tinham muitas goiabeiras, muitos riachos”. A infância não passava de uma aventura tão simples, sem superprodução nem outros quaisquer apelos consumistas. Porém, em compensação, havia espaços vazios como quintais, ruas, entre outros, onde podíamos brincar à vontade e em perfeita liberdade.
Os meninos de épocas passadas não eram obrigados a viverem confinados, feito prisioneiros perpétuos, nos playgrounds dos condomínios como passarinhos no espaço restrito das gaiolas. Todos os dias, exceto sábados e domingos, os meninos viviam uma doce rotina diária. E a minha era acordar cedo, tomar banho frio no pé nos vários poços d’água lá da horta feita e cuidada pela Maria Juquinha – minha segunda mãe, ir para a aula no grupo escolar Padre Sady Rabelo, almoçar, e depois brincar e brincar e brincar. Nos fins de semana, como era de praxe, as crianças apenas brincavam, brincavam, brincavam. O tempo demorava, custava tanto a passar que parecia que a gente nunca mais iria crescer. Vã ilusão, triste engano.
Por vezes eu ainda me pergunto: será que a infância dos meus desdobramentos celulares foi melhor do que a minha? Por mim, eu acredito que sim, eles acreditam que não e eu a eles digo que entre infâncias presentes e passadas não cabe nenhuma comparação possível. Infância para ser boa só precisa de uma coisa: ser infância com “I” maiúsculo. Assim como os meninos não devem querer tentar ser outra coisa senão meninos. E isso por uma razão bastante simples. Quem não pôde ser criança geralmente torna-se um adulto amargurado, ruminando raivosamente a sua infância perdida ou roubada.
Das poucas certezas de que sou feito, de uma certamente eu não abro mão. Eu fui menino, eu era tão menino e creio sinceramente que ainda o sou ou me torno de vez em quando. Ainda trago embutido na alma de adulto um moleque quase travesso. Esse menino é quem me redime quando perco a esperança na humanidade – como a bandalheira/roubalheira que ora assistimos em cores neste nosso país, com essas compras sem licitações realizadas pelos gestores públicos de diferentes esferas do poder, a título de enfrentamento à Covid-19, quando o meu coração se transforma num poço acre de amargura. O maior crime que se pode cometer contra a infância e o mais perverso é impedi-la de ser plenamente infância. Deixemos então as crianças serem simplesmente crianças. Essa é a mais bela, mais rara, mais urgente oferenda nos tumultuados e estressantes dias de hoje. Aqui em Teófilo Otoni, ou em Coroaci ou em qualquer outro lugar.
P.S.: Dedicado ao meu pai José Ramos Gonçalves, “Gonçalinho”.
Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni).