“(...) Ações barulhentas, de reconhecimento do terreno, operações midiáticas, todo mundo querendo mais espaços de estrelismos, sensacionalismo exuberante, com objetivo de se buscar segurança subjetiva, imaginária, meramente ilusória. Jogar para a plateia é muito fácil; difícil é ser efetivo, mostrar resultados; mostrar viaturas, armamento, e helicópteros riscando os céus, queimando o dinheiro do pagador de impostos, é muito fácil; difícil é ludibriar a sociedade consciente; aquele povo que não cai no engodo das Instituições que tentam demonstrar força por meio de ações pirotécnicas, fruto de um populismo cinegráfico, pujantes alegorias, de um show de imagens sem nenhum resultado prático social, nada palpável, cuja desproporcionalidade beira às raias da improbidade administrativa, artigo 11 da Lei nº 8.429, de 1992(...)”
RESUMO: O presente texto tem por finalidade precípua analisar a falência múltipla do sistema de Segurança Pública no Brasil, com ênfase em discussões em torno da fragilidade legislativa, disputa por espaços das agências de força, amor excessivo as funções investigativas, além de outras circunstâncias que contribuem para o aumento nefasto dos níveis de insegurança no país.
Palavras-chaves: Segurança; pública; legislação; agências; força; disputa; insegurança.
INTRODUÇÃO
O senso comum costuma afirmar que saúde pública, educação e segurança são atividades essenciais de estado; outras afirmações de consenso chegam à conclusão de que a segurança pública é a única atividade essencial que não admite descentralização ou delegações a terceiros, sendo, portanto, atividade irrenunciável e indelegável.
Não obstante a toda essa relevância, torna-se difícil explicar por que o país anda mergulhado nos altos níveis de criminalidade, onde se avolumam os delitos de feminicídios, homicídios, estouros de caixas eletrônicos, furtos e roubos, crimes cibernéticos, além de tantos outros, com aumento significativo da escalada da violência no campo e nas grandes cidades, e lado outro, elevando o número de sua população carcerária acima dos 850 mil presos, a maior da série histórica do país.
O certo é que não existe causa única para explicar esse nefasto estado de guerra em que vivemos nos dias atuais. Inúmeras são as causas relacionadas, mas resumindo-se a três, é possível citar a fragilidade da legislação brasileira, as disputas por espaços das agências de Segurança Pública e o concupiscente furor investigativo que acometem os setores da persecução criminal, além de outras concausas que contribuem sobremaneira para levar a esse lamentável estado falimentar, implantando um verdadeiro caos junto a sociedade brasileira.
1. A FRAGILIDADE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A legislação brasileira vem sendo modificada desde as Ordenações Filipinas, na decisão de 20 de outubro de 1823 quando se deliberou a adoção dessas normas da Corte até que o Brasil pudesse ter sua norma própria com base nos ditames da justiça e da equidade, conforme previsão do artigo 179, § 18, da Carta Outorgada de 1824.
O atual Código Penal de 1940 já passou por mais de 80 modificações; e hoje com o conjunto normativo do Código Penal, Código Processo Penal, Lei de Execuções Penais, Súmulas Vinculantes do STF e decisões dos Tribunais Superiores, o delinquente deve fazer um esforço tremendo para ficar preso no Brasil.
São tantos os benefícios penais e processuais que na prática, chega-se a estabelecer um verdadeiro paradoxo ao perceber que o Brasil possui uma legislação inteiramente frouxa, mas a sua população prisional possui números expressivos acima de 850 mil presos, colocando o país em 3º lugar no ranking mundial de aprisionamentos.
Antes de conseguir ficar preso no Brasil, é preciso vencer as barreiras do Termo de compromisso de comparecimento ao sistema de justiça criminal nos delitos de menor potencial ofensivo, lei 9.099/95; depois de um grande número de delitos que possibilitam alcançar esse benefício, vem a hipótese do pagamento de fianças nos crimes de até 04 anos de prisão, art. 322 do CPP, concessão do benefício do Acordo de não persecução penal, art. 28-A do CPP, o qual não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante condições ajustadas cumulativa e alternativamente; pode ser colocado ainda à disposição do delinquente a suspensão condicional do processo, nos crimes cuja pena mínima não seja superior a 01 anos em abstrato; depois de condenado pode aparecer a suspensão condicional da penal, art. 77 do CP, cuja condenação não seja superior a 02 anos; a pena privativa de liberdade pode ser substituída por pena restritiva de direitos nas condenações não superiores a 04 anos de prisão, nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça a pessoa, art. 43 e ss do CP.
Se o preso vencer essas barreiras da prisão, ele pode ser beneficiado com o livramento condicional; com o regime progressivo de cumprimento da pena; pode ser beneficiado com as diversas modalidades de remição da pena; pode ser beneficiado com as saidinhas temporárias, com as permissões de saída, com a concessão do indulto natalino, com a graça e com a anistia, operando nestes três últimos casos a extinção da punibilidade, artigo 107 do Código penal.
E se o preso cometer crimes em Minas Gerais, e se o cumprimento da pena ocorrer no estado das liberdades, o preso poderá ainda ser beneficiado com as benesses de férias anuais, conforme previsão no artigo 59 da Lei Estadual nº 11.404, de 1994.
Art. 59 – Será concedido descanso de até 1 (um) mês ao sentenciado não perigoso, de bom comportamento, após 12 (doze) meses contínuos de trabalho, dedicação e produtividade.
2. A DISPUTA DAS AGÊNCIAS DE SEGURANÇA POR ESPAÇOS MIDIÁTICOS
A segurança pública possui sua cláusula geral no artigo 144 da Carta Magna, segundo a qual, a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militar, es e corpos de bombeiros militares e polícias penais federal, estaduais e distrital.
Nesse mesmo dispositivo, aparecem as guardas civis municipais, § 8º, onde os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme a lei nº 13.022, de 2014.
Além das agências descritas em epígrafe, existem diversas outras como a polícia legislativa, a força nacional, os GAECOS, as agências responsáveis pelas investigações defensivas da OAB, além de outras.
Diante da multiplicidade dessas agências, é certo que a lei define as atribuições de cada Instituição. Antes da evolução tecnológica era comum cada instituição preocupar-se tão somente com suas atribuições legais, sem o jogo midiático. Mas hoje, o que se percebe é um jogo de vaidade e holofotes, pirotecnia e venda de imagens corporativas.
As Instituições estão preocupadas em aparecer nas mídias sociais, deflagrando operações barulhentas sem efeito prático, muita das vezes mobilizando grande aparato de policiais, cães, aeronaves, gastos excessivos com diárias de viagens, sem apresentação de objetos ilícitos apreendidos, com duvidosa legalidade operacional, e clara presença de improbidade administrativa, em razão da desproporcionalidade das ações e os resultados não alcançados.
3. O FUROR CONCUPISCENTE DAS FUNÇÕES INVESTIGATIVAS NO PAÍS
Outro tema de relevo é a atividade investigativa. A lei determina as agencias responsáveis pelas investigações e aquelas responsáveis pela prevenção, mas todo mundo quer investigar, com clara demonstração de condutas usurpadoras de funções públicas. A lei processual define um sistema acusatório puro, art. 3º-A, do CPP, segundo o qual, o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Diante da paridade de armas, em especial com o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, instituiu a chamada investigação defensiva, por meio do Provimento nº 188/2018, cujo conceito é previsto no artigo 1º, definindo a investigação defensiva como sendo “[…] o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para tutela de direito de seu constituinte”.
De outro lado, existe no Brasil e investigação exercida pelo detetive particular, criada por meio da Lei federal nº 13.432, de 11 de abril de 2017, que dispõe sobre o exercício da profissão de detetive particular. Nesse sentido, o artigo 2º define detetive particular como sendo “o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante”.
REFLEXÕES FINAIS
A síntese da falência múltipla da segurança pública no Brasil se baseia na tríplice questão da fragilidade legislativa, disputa por vaidades das agências da força e confusão investigativa. Existe um turbilhão de leis que teoricamente deveria proteger a sociedade. Mas o que se percebe é uma enxurrada de benefícios processuais em favor do delinquente; um garantismo monocular hiperbólico voltado para a proteção do criminoso, tendo em favor do delinquente um emaranhado de regras, súmulas, a exemplo das vinculantes 56 e 59, e da Súmula 492 do STJ, esta protetora da delinquência infantil. Uma menção especial à Lei de Execução Penal que existe um portfólio de proteção aos criminosos, desde a progressão de regime de cumprimento de penal, artigo 112 da LEP, as várias modalidades de remição de pena, além de tantos outros benefícios postos a favor da criminalidade e em detrimento da sociedade.
Súmula Vinculante 56. A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.
Súmula Vinculante 59. É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c, e do art. 44, ambos do Código Penal.
Súmula 492 do STJ – O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente.
Outra questão que leva à extrema barreira falimentar são os caprichos corporativos, cada instituição querendo aparecer mais que a outra; o que prevalece nos dias atuais é muito marketing corporativo e pouca efetividade. Ações barulhentas, de reconhecimento do terreno, operações midiáticas, todo mundo querendo mais espaços de estrelismos, sensacionalismo exuberante, com objetivo de se buscar segurança subjetiva, imaginária, meramente ilusória. Jogar para a plateia é muito fácil; difícil é ser efetivo, mostrar resultados; mostrar viaturas, armamento, e helicópteros riscando os céus, queimando o dinheiro do pagador de impostos, é muito fácil; difícil é ludibriar a sociedade consciente; aquele povo que não cai no engodo das Instituições que tentam demonstrar força por meio de ações pirotécnicas, fruto de um populismo cinegráfico, pujantes alegorias, de um show de imagens sem nenhum resultado prático social, nada palpável, cuja desproporcionalidade beira às raias da improbidade administrativa, artigo 11 da Lei nº 8.429, de 1992. Pode essa gente até enganar parte do povo durante parte do tempo, mas não consegue enganar todo o povo durante todo o tempo.
Repúdio a essa gente amadora, vendedoras de fumaça, mercadores de sonhos, verdadeiros astronautas; então para confortar as mentes desses maus profissionais, deixe-me recitar os versos de Gabriel O Pensador:
“(…) Aqui tem muita gente
Mas eu só encontro solidão
Ódio, mentira, ambição
Estrela por aí
É o que não falta
Astronauta!
A Terra é um planeta
Em extinção…(…)”
De outro lado, a disputa pelas ações investigativas; ações investigativas são definidas por leis, mas há instituições que querem a todo preço investigar; umas querendo investigar apenas casos seletivos; aqueles que proporcionam holofotes; outras praticando verdadeiras usurpações de funções públicas.
Somado a tudo isso, tem-se um verdadeiro caos instalado no país. Há quem afirme que o Brasil prende mal. Não obstante a grande massa prisional acima de 850 mil presos, o sistema penal é muito condescendente; prender alguém hoje diante das leis benevolentes, não é tarefa tão fácil; são tantos benefícios processuais que a 3ª maior população prisional do mundo passa a ser um contrassenso. Se houvesse um sistema jurídico mais rigoroso, mais protetor, certamente, a massa prisional no Brasil ultrapassaria a casa dos dois milhões de presos; é certo também que a prisão não é solução única para resolver todas as mazelas sociais; fiel a promoção dos direitos humanos, que a liberdade seja a regra; e que a prisão deve ser exceção; lado outro, deve o Estado zelar e melhor cuidar de suas funções preventivas, notadamente, cuidando da saúde e da educação das pessoas.
Assim, a falência múltipla do sistema de segurança pública se revela indubitável, quando se registram quase 60 mil homicídios consumados no Brasil, anualmente, mas a polícia não consegue apresentar números satisfatórios na apuração, deixando de apurar a grande maioria dos registros, o que se chama de cifras cinzas em criminologia, aqueles crimes que não são apurados pelo sistema de persecução penal. Nesse sentido, é possível afirmar que o mesmo estado que permite que sua população seja massacrada e ultrajada pelas grandes organizações criminosas, é o mesmo que implanta um inequívoco sistema de impunidade quando apresenta números pífios de taxa de elucidação de crimes.
Por derradeiro há de se entender que a polícia pode funcionar razoavelmente bem numa sociedade onde o crime é exceção; e mesmo na exceção é preciso viver a segurança pública como vocação, eis que é comum o Estado desrespeitar o seu servidor, sugar sua última gota de sangue, deixá-lo no bagaço, negar seus direitos, cortar direitos e garantias alcançadas com muito suor; negar revisão geral anual de seus salários, violando com pena de morte as regras do artigo 37, inciso X, da Carta Magna, e assim, quando a criminalidade passa a ser considerada como regra, onde o crime organizado passa a ditar as regras, solicitando, inclusive, o afastamento do Estado em diversas questões, sobrevindo o caos social, e diante das tantas outras questões, ocorre aquilo que se chama de processo de desnormatização sistêmica, transformando-se num território sem regras e sem normas, um processo atávico de um sistema bagunçado e caótico.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 17 de abril de 2024.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 17 de abril de 2024.
BRASIL. Lei de Execução Penal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7210.htm. Acesso em 17 de abril de 2024.
BRASIL. Lei nº 13. 432, de 2017. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13432.htm. Acesso em 17 de abril de 2024. BRASIL. Provimento nª 118, de 2018. Disponível em https://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/188-2018. Acesso em 17 de abril de 2024.