O Uso da Máquina Pública e a Venda de Sonhos

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Por Jeferson Botelho
Delegado Geral de Polícia – Aposentado. Prof. de Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Ciência das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Especialização em Combate à corrupção, antiterrorismo e combate ao crime organizado pela Universidade de Salamanca – Espanha. Advogado. Autor de livros

RESUMO: O presente texto tem por finalidade analisar a conduta do gestor público que se utiliza de cargos públicos para a comercialização de produtos e serviços particulares, violando frontalmente a Lei de Improbidade Administrativa. Tal prática revela a perversão dos princípios da administração pública, subvertendo o interesse coletivo em benefício próprio. A análise passa pelos modelos de administração pública, desde o patrimonialista até o gerencial, incluindo o modelo adotado pela Nova Zelândia, reconhecido mundialmente por sua transparência e eficiência.

Palavras-chave: Direito; administrativo; uso da máquina pública; interesses particulares; ato de improbidade administrativa; configuração.

INTRODUÇÃO

Na trajetória histórica da administração pública, há gestores que assumem altos cargos não para servir à coletividade, mas para vender sonhos, colocando a atividade-fim em segundo plano. O uso indevido da máquina pública – seja através de veículos oficiais, servidores ou influência política – configura um grave desvio de finalidade, que remonta ao modelo patrimonialista de administração pública.

Tal comportamento afronta diretamente o princípio da moralidade administrativa e caracteriza ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429/1992. A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer princípios como a impessoalidade, a moralidade e a eficiência (art. 37, caput), impõe limites à atuação do gestor público, visando coibir práticas que subordinem o interesse coletivo ao desejo pessoal de enriquecimento ou perpetuação no poder.

Este estudo abordará os diferentes modelos de administração pública ao longo da história, analisando como cada um influenciou a forma de gestão do Estado e como a evolução administrativa busca frear condutas ímprobas. Além disso, será destacada a experiência da Nova Zelândia, um dos países mais bem avaliados em governança pública, como contraponto à realidade brasileira.

DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

Evolução dos Modelos de Administração Pública

A administração pública não é estática. Desde o período absolutista até os dias atuais, sua estrutura e princípios passaram por transformações marcantes. Podemos destacar três grandes modelos históricos:

            1. Administração Patrimonialista – Predominante nos Estados absolutistas, caracterizava-se pela confusão entre o patrimônio público e privado. O governante e seus auxiliares viam os bens estatais como uma extensão de seus próprios interesses, facilitando a corrupção e o nepotismo.

            2. Administração Burocrática – Como reação ao patrimonialismo, esse modelo surgiu para garantir impessoalidade e profissionalização do serviço público. Inspirado nos princípios de Max Weber, buscava racionalizar a gestão estatal com regras rígidas, concursos públicos e hierarquia bem definida. No entanto, sua rigidez excessiva levou à ineficiência e à morosidade.

            3. Administração Gerencial – A partir da segunda metade do século XX, o modelo burocrático começou a dar lugar à administração gerencial, que valoriza a eficiência, a descentralização e a prestação de serviços de qualidade ao cidadão. Esse modelo foi amplamente adotado em reformas administrativas de diversos países, incluindo o Brasil nos anos 1990.

O Modelo Neozelandês e a Transparência na Gestão Pública

Dentre os modelos modernos de administração pública, destaca-se o da Nova Zelândia, que implementou uma profunda reforma administrativa na década de 1980. Seu sistema se baseia na transparência, na responsabilização dos gestores e na eficiência. A estrutura administrativa neozelandesa se diferencia pela ênfase na governança participativa, na avaliação de desempenho e no foco em resultados.

Enquanto países como o Brasil ainda enfrentam desafios para combater a corrupção e o desvio de finalidade na gestão pública, a Nova Zelândia demonstra que um modelo baseado na integridade e na prestação de contas pode transformar a administração estatal, reduzindo drasticamente práticas como o uso da máquina pública para fins privados.

A Improbidade Administrativa na Constituição Federal e na Lei nº 8.429/1992

O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 estabelece os princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. No § 4º, o texto constitucional prevê sanções severas para atos de improbidade administrativa, incluindo suspensão dos direitos políticos, perda da função pública e ressarcimento ao erário.

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) detalha as condutas que configuram improbidade, classificando-as em três categorias:

I – Enriquecimento ilícito (art. 9º) – Quando o agente público obtém vantagem econômica indevida.

II – Dano ao erário (art. 10º) – Quando há prejuízo aos cofres públicos.

III – Violação dos princípios da administração pública (art. 11º) – Quando há afronta aos princípios constitucionais, mesmo sem prejuízo econômico direto.

O uso da máquina pública para interesses particulares pode ser enquadrado nessas hipóteses, especialmente quando ocorre a exploração de bens e serviços públicos para benefícios próprios ou empresariais.

DAS REFLEXÕES FINAIS

A administração pública deve estar a serviço da sociedade, e não ser um meio para a realização de interesses pessoais ou comerciais. A utilização indevida da máquina pública compromete a legitimidade do Estado Democrático de Direito, corroendo a confiança da população nas instituições.

A experiência neozelandesa demonstra que a transparência, a responsabilidade e a ética são pilares fundamentais para uma gestão pública eficiente e justa. A moralização do serviço público no Brasil exige uma aplicação rigorosa da Lei de Improbidade Administrativa, bem como a conscientização dos cidadãos para fiscalizar e denunciar abusos.

O gestor público que faz da administração um balcão de negócios subverte a essência do cargo que ocupa, traindo o compromisso com a coletividade. A impunidade desses atos compromete não apenas a moralidade administrativa, mas a própria democracia, pois desvirtua o poder estatal e mina a crença na justiça.

A situação se agrava ainda mais quando o gestor público pertence simultaneamente aos quadros da administração pública e do sistema de justiça, e todos percebem isso, mas adotam uma espécie de cegueira deliberada. Mais grave ainda é quando a própria administração se aproveita dessa situação, pois o gestor público atua como um manto protetor da Administração Pública diante de futuros problemas de desvios perante o sistema de justiça.

Em um Estado Democrático de Direito, não há espaço para a comercialização de sonhos às custas do erário. A máquina pública deve ser um instrumento de progresso social, não um veículo de enriquecimento ilícito. A história mostra que o combate à improbidade é árduo, mas necessário para a construção de uma nação verdadeiramente justa e democrática.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 29 de março de 2025.

BRASIL. Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992). Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 29 de março de 2025.

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