Projeto LULOPETISTA: entre o projeto de esquerda e a conciliação

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Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda em Política Social – UFF. Pesquisadora GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

Embora seja um debate sensível, especialmente por estarmos em período de efervescência política em razão das eleições municipais, julgo ser importante a provocação sobre esta temática para induzir a reflexão, tanto daqueles que apresentam posições políticas bem definidas, quanto dos leitores que não se reconhecem como sujeitos norteados por percepções predefinidas, como de esquerda, centro ou direita.

Em linhas gerais, a esquerda abarca ideais de igualdade e liberdade, associando a percepção de que as desigualdades sociais não são produzidas pela natureza ou pela biologia mas, por uma construção humana. Assim, podem ser desconstruídas, de modo que haja equilíbrio em sociedade e não a adaptação da massa populacional em favor dos interesses de pequenos grupos de poder que se dedicam a manter seus privilégios. No entanto, grandes críticas habitam o universo da esquerda, que é marcada pela pluralidade de ideias. Deste modo, não apenas um, mas vários grupos, dentre eles, os partidos políticos, compõem a matriz esquerda brasileira.

Para a construção deste texto busquei referenciar trechos de um dos capítulos do livro: “A crise das esquerdas”, publicado em 2017, onde foi entrevistado o candidato da esquerda à prefeitura de São Paulo, derrotado em 2º turno no último domingo (29). Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), expôs, na ocasião, sua crítica à condução dos governos que ele chamou de “lulopetismo”, que durou 13 anos. Para começo de conversa, produziu um longo diálogo sobre o esgotamento de alguns projetos da esquerda na América Latina que se distinguem por duas direções. Uma, a partir de projetos bolivarianos (Simón Bolívar), que pautam reformas populares, e outra, que traduz governos que promoveram a inclusão pelo consumo sem a promoção de reformas estruturais. O caso brasileiro amolda-se a este último exemplo. Houve avanços sociais significativos, sem dúvidas, mas, a ruptura requerida pelo projeto de sociedade alinhado à percepção de esquerda, não aconteceu. Temáticas determinantes para a mudança estrutural da sociedade brasileira, a exemplo das reformas tributárias e a auditoria da dívida pública foram pautas negligenciadas. Além disso, para complementar a agenda de não mudança, o sistema eleitoral permaneceu viciado no que tange ao financiamento de campanha e à restrição de participação popular.

Nesse molde, o entrevistado produziu uma crítica bem fundamentada acerca da postura do Partido dos Trabalhadores (PT) para ter condições de chegar à presidência do país. Ele pontuou que este acesso foi à custa dos pactos internos ao sistema político, promovendo a renovação do pacto conservador, oposto às premissas do partido, voltado à esquerda. Esta prática não se perdeu no tempo, tem sido reproduzida até os dias atuais. “A crise em que o PT está mergulhado acaba contaminando o cenário de esquerda, como se fosse uma coisa só”, disse Carlos Muanis, um dos entrevistadores. Nessa direção, foi descrito no diálogo que o PT foi o único partido fundado da sociedade civil, a partir de movimentos sociais plurais. O anseio popular chegou à instância representativa dos trabalhadores e trabalhadoras na década de 1980. Boulos acredita que o projeto de esquerda parte do respaldo da mobilização popular, pois a lógica desta corrente não é a formação indiscriminada de partidos políticos, mas, tornar-se representante das demandas populares.

Num esforço cronológico, Guilherme Boulos pontuou que em 1989 e 1994 o PT não obteve êxito no processo eleitoral. Ainda em 1994 teria sido preparada a reorientação da estratégia petista, que se pautou na ideia de ceder e pactuar para que fosse possível a chegada ao governo central. Após alianças e menos embates com os partidos tradicionais, em 2002, Lula chegou ao poder. Com uma agenda recheada de demandas oriundas dos movimentos populares, o novo governo teria mantido pactos e agradado a todos. Respondeu bem aos anseios populares, promovendo avanços incontestáveis frente à realidade brasileira.

O momento Lula, chamado por Boulos de lulismo, foi o ápice do governo petista. Por isso, o entrevistado sinalizou que teria sido o momento oportuno para pautar as rupturas estruturais que subsidiariam o projeto que pretende a redução das desigualdades socioeconômicas em um dos países mais desiguais do mundo. Romper a estrutura significa garantir a longo prazo a qualidade de vida das pessoas e a resposta adequada aos seus anseios, mesmo com a mudança do governo. No entanto, apesar da popularidade de Lula em torno de 85%, não houve ruptura das velhas formas de condução política. O PT optou por manter o pacto conservador, imaginando que duraria para sempre. No entanto, o ano de 2008 foi marcado por uma grave crise mundial, mas seu impacto foi pouco sentido na ponta da linha, não tendo refletido no cotidiano público que o sistema de acordos estava em ruínas. As crises limitam o poder das esquerdas – seja qual for o partido. A conciliação, como instrumento de negociação política onde instaura-se o jogo do “eu ganho, mas, você também”, tornou-se neste período, bastante restrito.

As políticas sociais, por exemplo, auxiliam este processo de negociação. No entanto, sem financiamento, em tempos de crise, os recursos ficam escassos e os projetos de esquerda, vulneráveis. A sua crítica aos programas sociais reafirma o discurso da contradição das políticas sociais que, ao passo que oferecem proteção e/ou oportunidades, também financiam grandes grupos, que não tem o compromisso com a emancipação popular, mas, com o lucro. “O Minha casa minha vida deu dinheiro a rodo para as empresas construtoras. O Prouni foi uma sustentação da universidade privada no país, e por aí vai”, disse Boulos. O PT, segundo ele, teve as oportunidades reais de estruturar o projeto de esquerda, que se deslocou ao longo dos 13 anos de projeto “lulopetista”, apontando, assim, para o esgotamento dessas possibilidades no momento atual.

A conclusão de Boulos, ainda no ano de 2017, mostrou o que foi possível observar no cenário político em 2020: um PT desgastado, que perdeu protagonismo. Se por um lado foi alvo das ofensivas raivosas dos grupos de interesse que se opuseram aos avanços sociais alcançados na primeira década do século XXI e “saíram do armário” a partir das manifestações de 2013, por outro, amarga o resultado do processo de conciliação entre classes, que parece ter condições e prazo de validade.

(Referência: Fornazieri, A.; Diéguez, C.R.M.A.; Muanis, C.; Almeida, R.E. Por uma nova pedagogia de esquerda: Entrevista com Guilherme Boulos. In: A Crise das Esquerdas. Fornazieri, A. e Muanis, C. (orgs.); Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2017; Imagem: facebook do Guilherme Boulos).

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