Reprise da crise sanitária de 1918 em 2020: a negação e o negacionismo

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Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Durante a pandemia de 1918, os brasileiros não acreditavam que a gripe espanhola chegaria ao Brasil porque nosso país é tropical e quente. Durante a pandemia de 2020, os brasileiros não acreditavam que a Covid-19 provocaria a devastação que as manchetes dos jornais expunham sobre uma região da Itália. Afinal, no Brasil faz bastante calor e o vírus não suportaria altas temperaturas. Na crise sanitária de 1918 os alemães foram eleitos como o “bode expiatório”, ou seja, culpados pela disseminação do vírus.

Em 2020, os apontados como propagadores intencionais da enfermidade foram os chineses. Durante a gripe espanhola não existiam mecanismos que apontassem a causa da doença, apesar disso, logo que as autoridades da época descobriram como evitar a proliferação, trataram de espalhar a notícia à população por meio de canais de comunicação disponíveis, principalmente, os jornais impressos. Durante a pandemia de Covid-19, já se conta com tecnologia para detecção da doença e suas características; a imprensa permaneceu como canal de extrema importância para a informação da população; e em ambos os períodos, houve descrença, negação e o resultado morte.

Em entrevista concedida ao Marcelo Tas, apresentador do programa Provoca, da TV Cultura, a historiadora Lilia Schwarcz destacou o papel fundamental do jornalismo nos distintos momentos históricos, pois representa os canais essenciais de informação a serviço da coletividade. Ela explicou que, por estarmos localizados no ocidente, não estamos preparados para a morte. Sendo assim, toda doença que acomete o coletivo tende a ser negada pelas pessoas.

No entanto, ela faz uma provocação, buscando diferenciar a negação – que é comum aos que não creem que estão acometidos de uma doença ou de sua existência – do negacionismo – expressão em evidência na realidade dos brasileiros. Segundo a entrevistada, a negação ocorreu tanto em 1918, quanto em 2020. Já o negacionismo, foi identificado apenas no momento presente. Trata-se de uma política onde o Estado resolve não olhar para o que está acontecendo. Em outros termos, significa que os governos responsáveis pela execução ou realização das políticas do Estado, estão atuando de forma desconectada da urgência do enfrentamento do problema globalmente identificado.

No Brasil, por sua proporção continental, a crise sanitária do início do século passado fez com que os governantes aprendessem com a pandemia, mobilizando esforços para a criação, em 1930, do Ministério da Educação e Saúde Pública. Ainda assim, “[…] a gente não aprendeu que gripe não se acaba por decreto, e […] que pandemia também não se acaba politizando as vacinas […]”, por escolhas entre uma ou outra. “Os brasileiros têm que aprender a lidar com a boa informação e com quem pode nos tirar desse lugar: a ciência. E é justamente a ciência, quem pode nos tirar disso, que está sendo atacada pelo atual governo”, disse Lilia.

Esta postura do chefe de Estado brasileiro prejudica os esforços de enfrentamento da crise, uma vez que é a maior referência política do país. Um chefe de Estado tem poder sufi – ciente para mobilizar as pessoas e também, para desmobilizar. Ocorre que, mesmo diante de evidências científicas que apontam o contrário do que diz tal líder, a população brasileira, com expressiva parcela sem instrução ou com baixa capacidade cognitiva para interpretação do cenário, sequer questiona posturas contestáveis do governo. Pelo contrário, reforçam a reprodução da política negacionista do Estado, mesmo após quase um ano de pandemia e mais de duzentos mil óbitos decorrentes de complicações da doença.

Assim, o acolhimento das orientações dos especialistas poderia tornar o momento menos traumático para todos. Representantes experientes em determinados assuntos precisam ser alocados em pastas governamentais onde possam colaborar com o coletivo, conforme respectiva área de especialidade. Um exemplo do inverso do que deveria ser feio foi enfatizado por Lilia durante sua entrevista: a situação do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, que ocupa uma função deslocada da sua vasta experiência no campo da logística militar.

Estas decisões, que partem do governo, podem produzir efeitos desastrosos porque inviabilizam o enfrentamento da pandemia por meio da coordenação que as situações demandam. Os reflexos deste desvio de competência podem ser exemplificados pela ingerência identificada pela falta de oxigênio para o tratamento dos doentes em Manaus, no estado do Amazonas, no início deste ano. Uma falha anunciada dias antes do colapso que resultou em inúmeras mortes.

Nessa direção, outro desafio será a vacinação em massa. A história das vacinas é uma história de rebeliões desde o século XVII, alerta a entrevistada. Muita resistência, marcada pela deslegitimação dos laboratórios e mentiras propagadas em redes sociais sobre a (in)eficácia das vacinas, ocorre desde que se noticiou que o Brasil iniciaria a aplicação das primeiras doses do imunizante. Apesar dos entraves perceptíveis durante esta crise sanitária e humanitária, o que se espera dos representantes do povo na gestão do Estado é o compromisso com a vida das pessoas, a partir da tomada de decisão com base em evidências científicas.

Referência: Schwarcz, Lilia. Programa Provoca. Tv Cultura, 2020. Disponível em: https://www. youtube.com/ watch?v= LMKk6pzRnKs&t=885s Acesso em 02. fev. 2021. Imagem: Milton César, Coronavirus adora os negacionistas… Jornal Midiamax, 2020.

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