A liberdade difícil

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José Carlos Freire
Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

(Nota: A partir desta edição, conto com a preciosa parceria de Vinícius Figueiredo que fará a ilustração dos textos)

Hoje gostaria de tratar de outro livro de Clarice Lispector. Sigo a sugestão de meu amigo Igor que, após ter lido o texto sobre A paixão segundo G.H.,sugeriu-me a leitura do inquietante Água viva. Resultado de três anos de intenso trabalho, o livro foi publicado em 1973. O texto original possuía quase trezentas páginas, bem mais do que as setenta da edição final. Chegou a ter outros títulos provisórios – um deles bem sugestivo: “Objeto gritante”.

O texto fragmentário contém inúmeras histórias possíveis, sem um fio evidente que as amarre. Mistura gêneros distintos como crônica, prosa poética, ensaio filosófico etc. Poderia ser tomado como um exercício na linha do “fluxo de consciência”, técnica literária marcante em autores europeus e estadunidenses do início do século passado. Não falta quem situe Clarice como pioneira desse estilo literário no Brasil. No fluxo de consciência o pensamento segue livremente por associações imprevistas e não lineares. Por isso a narradora de Água Viva pode dizer: “Estou atrás do que fica atrás do pensamento”.

Mas a literatura do século XX não está sozinha na busca por uma investigação desse tipo sobre o ser humano. A filosofia já se debatia com essa temática, como no caso de Henri Bergson (1859-1941), o filósofo francês que se empenhou em mostrar a importância da intuição como método. Para Bergson, há em nossa experiência existencial, por assim dizer, dois “eus”. O primeiro deles é superficial, orientado a se enquadrar na sociedade, atento ao tempo do relógio e aos papéis sociais. Há, porém, um eu profundo que só pode ser acessado pela intuição.

No eu superficial, há uma sucessão de tempos: passado, presente e o futuro que virá. No eu profundo, eles coexistem na forma de duração: o passado e o futuro são agora. O que Bergson busca pela filosofia é patente no romance de Clarice Lispector. Ela não quer apenas a percepção aguda do momento: quer visitar a morada do eu profundo. Em suas palavras: “Mais que um instante, quero seu fluxo”.

Bergson não é original nesta abordagem, pelo menos na discussão sobre o tempo. Bem antes dele, Agostinho de Hipona (354-430) já havia sugerido uma crítica à compreensão tradicional sobre o tempo. Para ele, passado, presente e futuro não são tempos cronológicos e sim tempos da razão, ou seja, o passado e o futuro estão no presente, como memória ou como projeção. Nesse sentido, a narradora de Água Viva declara sua ambição: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais”. A questão é: como escapar de tal condição?

Há uma pista interessante: a palavra. A narradora é uma pintora que, trocando a tela pelo papel, embrenha-se na selva da escrita para tentar se expressar. Como ocorre com Bergson e Agostinho é comum se aproximar Água Viva de outro filósofo importante, o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que se dedicou ao estudo da lógica e da linguagem. Eis um problema colocado por ele: entre o mundo e o nosso pensamento há um intermediário, um atravessador – a própria linguagem que é incapaz de nos fornecer a imitação exata da realidade. Clarice parece estar na mesma sintonia quando afirma: “O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa (…)”. Ou então: “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras”.

Acontece que estamos diante de um livro, ou seja, um texto escrito com a finalidade de comunicar algo. Se é frágil a linguagem, não podemos abandoná-la simplesmente já que tudo que conseguimos dizer ou pensar se faz por meio dela. Eis, então, a síntese de Clarice: “escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu”.

O leitor perguntará: afinal, por que a escritora nos submete a um exercício tão intenso de reflexão? A cada página, parágrafo ou trecho uma meditação profunda! Há muitas respostas possíveis, assim como há diversas interpretações de Água Viva. Arrisco a minha: trata-se de uma procura angustiante pela liberdade. Tal condição nos exige a busca permanente daquilo que somos e do que a realidade é: “Quero apossar-me do é da coisa”.

O que quer a autora? Deixemos a palavra com ela: “Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. (…) Quero a experiência de uma falta de construção”. Todo um desmonte, tal qual se vê em outros textos de Clarice, para que se possa proceder, em seguida, uma remontagem: “Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me”. É uma liberdade difícil, evidente, mas autêntica.

Quem se embrenha na busca de si, do “it”, do seu eu que está atrás das palavras e, portanto, atrás dos rótulos e dos papéis sociais será, certamente, mais livre. Por isso três frases me parecem costurar Água Viva: no início, a sentença vibrante: “ninguém me prende mais”; no meio: “eu te deixo ser, deixa-me ser então”; e por fim: “simplesmente eu sou eu e você é você”.

Desse modo, o amor, esse sentimento tão nobre que nos faz mais livres e “impede a morte” poderá ser vivido com menos amarras e em razão do bem do outro. Poderemos dizer como a narradora nas últimas linhas do livro: “Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo”.

Sugestão de leitura: “Água Viva” (1973), de Clarice Lispector. Publicado pela Editora Rocco. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com.

1 COMENTÁRIO

  1. José, fico muito feliz de ter aceitado a sugestão e estou acompanhando esse diálogo tão frutífero com a Clarice, é uma grande amiga, não é?! Como ela mesma disse, “eu ganho muito na releitura”, esse livro foi de cabeceira durante anos, foi minha porta de entrada no universo literário. As vezes lia duas vezes no dia e criei várias formar rituais para lê-lo até chegar ao ponto de não me preocupar mais com o sentido da palavra, mais sim apenas com o seu som e fluxo. Cheguei em um silêncio muito profundo, um silêncio de criação e como não tinha muita noção do que estava acontecendo deixei- me levar e vivi uma das mais belas experiências da minha vida, algo inefável, surpreendente, absurdo e libertador!

    É um lindo espaço este, Zé! Gratidão!

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