"O direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana." (Tobias Barreto)
RESUMO. O presente ensaio se propõe a examinar, de forma não exauriente, o importante e palpitante tema referente ao concurso de crimes e à continuidade delitiva, buscando estabelecer uma teoria geral a despeito, com ênfase nas inovações que se pretendem introduzir no Código Penal Brasileiro, por meio da Proposta de Lei do Senado no 236/2012, distribuída em 543 artigos, com previsão de noventa dias de vacatio legis, para entrada em vigor após sua publicação. Destarte, visa fomentar o estudo antecipado daquilo que pode constituir um marco regulatório das relações sociais do próximo século, sendo assim, um capital intelectual primordial para a sociedade numa concepção de moderno instrumento de gestão do conhecimento para dirigir a vida das gerações presentes e futuras.
A Comissão de Juristas para a elaboração do anteprojeto do Código Penal, criada pelo Requerimento n.º 756, de 2011, do Senador Pedro Taques, tem como tarefa principal atualizar o Código Penal, sendo, para tanto, “imprescindível uma releitura do sistema penal à luz da Constituição, tendo em vista as novas perspectivas normativas pós-88.” Isso porque,
“O atraso do Código Penal fez com que inúmeras leis esparsas fossem criadas para atender a necessidades prementes. Como consequência, tem-se o prejuízo total da sistematização e organização dos tipos penais e da proporcionalidade das penas, o que gera grande insegurança jurídica, ocasionada por interpretações desencontradas, jurisprudências contraditórias e penas injustas – algumas vezes muito baixas para crimes graves e outras muito altas para delitos menores”. (TAQUES, 2011)
No dia 27 de junho de 2012, após sete meses de discussões levadas a efeito por uma comissão de juristas comandada pelo Ministro Gilson Dipp, o anteprojeto foi apresentado ao então presidente do Senado José Sarney.
Orientado pela mesma dinâmica da atual legislação, o anteprojeto permanece dividido em duas partes: uma para tratar da Parte Geral, do artigo 1º ao 120, e a outra, Parte Especial, contida nos artigos 121 a 543, para versar sobre os tipos penais e as disposições finais, contemplando toda a legislação penal esparsa naquilo que se chama de princípio da Reserva da Legislação Codificada.
Para fins didáticos, torna-se extremamente importante discorrer sobre a conformação do concurso de crimes e da continuidade delitiva no atual Código Penal, para, num segundo momento, analisar os novos contornos pretendidos pelo projeto de reforma do Codex Penal.
Assim, ab initio, pretende-se esmiuçar o conceito, a natureza jurídica e as demais particularidades do concursus delictorum, em especial incidência nas modalidades de concurso formal, material e continuidade delitiva.
A despeito das teorias de aplicação da pena nas hipóteses, importa também discorrer, com especial primazia, sobre as teorias do cúmulo objetivo e da exacerbação da pena, sendo imperioso, todavia, tecer breves considerações acerca da diferenciação entre concurso de crimes (concursus delictorum), concurso de pessoas (concursus delinquentium) e conflito aparente de normas (concursus normarum), dada a similitude com que os temas se apresentam,
Em sua configuração atual, com nova redação determinada pela Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, que imprimiu reformas na parte geral, o Código Penal assim define o concurso de pessoas, o concurso material, o concurso formal e o crime continuado, a teor dos seus artigos 29, 69, 70 e 71, respectivamente, in verbis:
CONCURSO DE PESSOAS
Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
CONCURSO MATERIAL
Art. 69 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
CONCURSO FORMAL
Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
CRIME CONTINUADO
Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Segundo “BELING”, o conflito aparente de normas refere-se à relação que medeia entre duas leis penais, pela qual, enquanto uma é excluída, a outra é aplicada.
Em que pese ser possível a um único sujeito matar, subtrair e praticar diversas outras condutas delitivas, isoladamente é concebido que uma infração penal pode ser realizada por duas ou mais pessoas que concorrem para o evento.
Nessa hipótese, está-se diante de um concurso de pessoas, fenômeno conhecido por concurso de agentes, concurso de delinquentes, co-autoria, co-delinquência, cumplicidade ou participação.
Para a caracterização do sobredito concurso de pessoas, importa serem atendidos os requisitos relativos à pluralidade de agentes e de condutas, à relevância causal de cada conduta, ao liame subjetivo de cada agente e à identidade de infração penal ou unidade de tipo.
Assim, para que haja participação, são necessários os seguintes requisitos:
a) pluralidade de condutas;
b) relevância causal de cada uma;
c) liame subjetivo;
d) identificação da infração para todos os participantes.
Ao tratar do tema do concurso de pessoas, a doutrina o divide em CONCURSO EVENTUAL e CONCURSO NECESSÁRIO.
Assim, considera-se eventual, o concurso verificado nas infrações passíveis de serem praticadas por um só agente, modalidade essa, pois, presente nos chamados crimes unissubjetivos.
Já o concurso necessário, por sua natureza intrínseca, somente se configura nos tipos que podem ser cometidos por duas ou mais pessoas, ou seja, nos crimes plurissubjetivos, a exemplo da quadrilha ou bando, previsto no artigo 288 do Código Penal.
Uma das características do concurso de pessoas é a unidade de tipo. Sobre o assunto a doutrina descreve três teorias, a monista, a pluralista e a dualista, a saber:
TEORIA MONISTA – UNITÁRIA – IGUALITÁRIA:
O crime ainda quando tenha sido praticado em concurso de várias pessoas, permanece único e indivisível. Não se distingue entre as várias categorias de pessoas (autor – partícipe – instigador – cúmplice), sendo todos autores ou co-autores do crime. Foi a posição adotada pelo Código de 1940, no artigo 29.
TEORIA PLURALISTA:
Para essa teoria, à multiplicidade de agentes corresponde um real concurso de ações distintas e, em consequência, uma pluralidade de delitos, praticando cada uma das pessoas um crime próprio, autônomo.
TEORIA DUALISTA:
Há um crime para os autores e outro para os partícipes
Quanto à conceituação de quem é autor do crime, foram criadas três teorias:
TEORIA FORMAL-OBJETIVA:
Formula um conceito restrito de autor. Autor é aquele que pratica a conduta típica inscrita na lei, ou seja, aquele que realiza a ação executiva, a ação principal. É o que mata, subtrai, falsifica. Adotam tal conceito, entre nós, ANÍBAL BRUNO, DAMÁSIO, FRAGOSO E FREDERICO MARQUES.
TEORIA MATERIAL-OBJETIVA:
Formula um conceito extensivo de autor. Autor não é só o que realiza a conduta típica, como também aquele que concorre com uma causa para o resultado.
TEORIA FINAL-OBJETIVA OU DOMÍNIO FINAL DO FATO:
Formulada pela doutrina alemã, conceitua-se como “autor” aquele que tem o domínio final do fato. Será autor aquele que, na concreta realização do fato típico, consciente, o domina mediante o poder de determinar o seu modo e, inclusive, quando possível, de interrompê-lo. Autor é, portanto, segundo essa posição, quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato.
Isso posto, passando-se ao estudo do concurso de crimes, pode-se conceituá-lo como a prática de dois ou mais crimes através de mais de uma ação ou omissão (concurso material), ou a prática de dois ou mais crimes, mediante uma só ação ou omissão, embora resultem em dois ou mais delitos (concurso formal).
Previsto no artigo 69 do Código Penal, o concurso material é também chamado pela doutrina de concurso real ou cúmulo material, podendo caracterizar-se como homogêneo ou heterogêneo.
O concurso material homogêneo ocorre quando os crimes praticados forem da mesma natureza, como vários furtos, por exemplo, e o concurso heterogêneo, quando os crimes forem de natureza diversa, tal como furto de um automóvel e o atropelamento de um pedestre.
Lado outro, caracteriza-se o concurso formal, a teor do artigo 70 do Código Penal, quando o agente pratica dois ou mais crimes, mediante uma só ação ou omissão, embora resultem dois ou mais delitos.
Também denominado concurso ideal ou intelectual, uma vez reconhecido o concurso formal, aplica-se a pena mais grave, ou, se iguais, somente uma delas, aumentada de um sexto até metade.
A segunda parte do artigo 70 do Código Penal, contempla a figura do concurso formal imperfeito, que ocorre quando o agente, mesmo com uma só ação, tinha desígnios autônomos, ou seja, pretendia mais de um resultado.
O artigo 71 do Código Penal, por sua vez, se refere ao crime continuado, ou seja, à continuidade delitiva, que ocorre quando o agente, através de mais de uma conduta, comete dois ou mais delitos da mesma espécie, idênticos ou não. A despeito, consideram-se da mesma espécie, os delitos que se assemelham por idênticos elementos objetivos e subjetivos.
Para a solução do concurso de crimes, são adotados quatro critérios para a aplicação respectiva da pena, a saber:
CRITÉRIO DO CÚMULO MATERIAL
Neste caso, as penas são somadas para os diversos crimes. As sanções são somadas, depois de haver, por preceito constitucional, a aplicação individualizada para cada um dos crimes.
CRITÉRIO DA EXASPERAÇÃO
Este critério não soma as penas. Neste caso, toma-se uma das penas (a maior ou, se iguais, qualquer uma delas) e, em relação a esta pena, incide uma majoração, uma causa tarifada de aumento, é dizer, uma fração. No Brasil, este critério foi adotado para o concurso formal próprio (CP, art. 70, 1ª parte) e para a Continuidade delitiva (CP, art. 71). Esclareça-se que o concurso formal impróprio (CP, art. 70, parte final) segue a regra do cúmulo material;
CRITÉRIO DO CÚMULO JURÍDICO
Este critério não é usado no Brasil. Consiste na aplicação da pena por um cúmulo jurídico legal, diferente do cúmulo material;
CRITÉRIO DA ABSORÇÃO
Neste caso, as penas mais graves absorvem as menos graves ou, no dizer de HUNGRIA, major absorbet minorem.
O tema do concurso de pessoas, a teor do novo Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, é agora tratado nos artigos 38 e seguintes, reproduzindo-se o caput do artigo 38 a descrição in totum do artigo 29 do atual Código Penal:
CONCURSO DE PESSOAS
Art. 38. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º Concorrem para o crime:
I – os autores ou coautores, assim considerados aqueles que:
a) executam o fato realizando os elementos do tipo;
b) mandam, promovem, organizam, dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a realização dos elementos do tipo;
c) dominam a vontade de pessoa que age sem dolo, atipicamente, de forma justificada ou não culpável e a utilizam como instrumento para a execução do crime; ou d) aqueles que dominam o fato utilizando aparatos organizados de poder.
II – partícipes, assim considerados:
a) aqueles que não figurando como autores, contribuem, de qualquer outro modo, para o crime; ou
b) aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem.
CONCORRÊNCIA DOLOSAMENTE DISTINTA
§ 2º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
CONCORRÊNCIA DE MENOR IMPORTÂNCIA
§ 3º Se a concorrência for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
CAUSAS DE AUMENTO
§ 4º A pena será aumentada de um sexto a dois terços, ressalvada a hipótese do parágrafo único do artigo 34 deste Código, em relação ao agente que:
I – promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes;
II – coage outrem à execução material do crime;
III – instiga, induz, determina, coage ou utiliza para cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade, ou é, por qualquer causa, não culpável ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal; ou
IV – executa o crime ou nele participa mediante paga ou promessa de recompensa.
CIRCUNSTÂNCIAS INCOMUNICÁVEIS
Art. 39. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.
EXECUÇÃO NÃO INICIADA
Art. 40. O ajuste, o mandado, o induzimento, a determinação, a instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se a execução do crime não é iniciada.
Como se vê, o novo dispositivo adota a Teoria Dualista, segundo a qual existe um delito para os autores e co-autores, previsto no artigo 38, 1º, I e outro para os partícipes, artigo 38, 1º, II.
O § 1º do Artigo 38 do PLS nº 236/2012 reproduz também a construção doutrinária que existe sobre as diversas formas de participação no delito: autoria, coautoria, partícipe, autoria de escritório, autoria pelo domínio do fato, autoria mediata e outras formas. Assim, são autores ou coautores aqueles que executam o fato realizando os elementos do tipo.
Desta forma, são autores aqueles que realizam a conduta prevista no verbo presente no injusto penal, sejam matando, roubando, extorquindo ou sequestrando. Arrematando, segundo a doutrina autor é aquele que pratica a conduta típica inscrita na lei, ou seja, aquele que realiza a ação executiva, a ação principal. É o que mata, subtrai, falsifica.
Ensina Sebastian Soler que autor em Direito Penal é quem executa a ação expressa pelo verbo da figura delituosa.
Percebe-se que o PLS 236 passa a adotar expressamente no artigo 38, §1º, inciso I, alínea a, a Teoria formal-objetiva, já adotada por Damásio, Aníbal Bruno e outros.
O artigo 38, §1º, inciso I, alínea b, também qualifica como autores ou coautores, aqueles que mandam, promovem, organizam, dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a realização dos elementos do tipo.
Aqui nos parece adota a Teoria Material-Objetiva, segundo a qual autor ou coautor, numa formulação extensiva de autor, sendo este não só o que realiza a conduta típica, como também aquele que concorre com uma causa para o resultado.
O artigo 38, §1º, inciso I, alínea c, traz com muita clareza a figura da autoria medida sempre comentada entre os maiores doutrinadores do mundo. Assim, também é autor aqueles quem dominam a vontade de pessoa que age sem dolo, atipicamente, de forma justificada ou não culpável e a utilizam como instrumento para a execução do crime.
Agora é fato concreto. A Teoria do domínio do fato está consagrada no artigo 38, §1º, inciso I, alínea d, aqueles que dominam o fato utilizando aparatos organizados de poder.
A teoria do domínio do fato ou teoria do domínio do facto é uma Teoria criada por Hans Welzel em 1939 para julgar os crimes ocorridos na Alemanha pelo Partido Nazista em que consiste na aplicação da pena ao mandante de um crime, mas como autor e não como partícipe do crime. A teoria ganhou projeção internacional quando o jurista Claus Roxin publicou a obra Taterschaft und Tatherrschaft em 1963, onde a teoria foi desenvolvida, fazendo com que ganhasse a projeção na Europa e na América Latina.
Para que seja aplicada a teoria, é necessário que a pessoa que ocupa o topo de uma organização emitir a ordem do crime e comandar o fato.
No Brasil, recentemente no julgamento da Ação Penal 470, conhecida como “Escândalo do Mensalão”, a Teoria do Domínio do Fato esteve em evidência no Supremo Tribunal Federal onde juristas de renome repercutiram a sua existência, fazendo nascer em toda a sociedade brasileira grandes discussões em torno de sua aplicação no direito penal pátrio.
Nasce aqui um conceito extensivo de autor, desenvolvido pela doutrina alemã nos anos 30 do século passado, atribuído a Leopold Zimmerl, a quem foi atribuída à primeira versão sistematizada de autor, como sendo todo aquele que contribui com alguma causa para o resultado é considerado autor.
A concorrência dolosa distinta permanece inalterada. Assim, se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
Em se tratando de concorrência de menor importância, permanece a mesma dinâmica do atual Código Penal, com diminuição de um sexto a um terço.
No PLS 236/12, o concurso material é tratado no artigo 86 e não mais no artigo 69 como ocorre no atual Código Penal. Se aprovada a reforma, ocorrerão mudanças sensíveis, eis que na reforma a pena de prisão passa a substituir as penas de reclusão e detenção que desaparecem do nosso ordenamento jurídico.
O sistema de solução das penas continua sendo o do cúmulo material, somando-se as penas de prisão.
É o que se percebe na simples leitura do artigo 86 do Projeto de Lei do Senado, conforme descrição abaixo:
Art. 86. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas de prisão em que haja incorrido.
§ 1º Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena de prisão por um dos crimes, para os demais será incabível a sua substituição.
§ 2º Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.
Visto o novo desenho do concurso material, passa-se a estudar o concurso formal, agora tratado no artigo 87 do PLS nº 236/2012.
O concurso formal perfeito previsto na primeira parte do artigo 87 continua com a possibilidade de se aplicar a pena mais grave das penas cabíveis ou apenas uma delas se iguais, aumenta em qualquer caso de um sexto até a metade, adotando-se a teoria da exasperação da pena.
No caso de concurso formal imperfeito, derivado de ação ou omissão dolosa, com a concorrência de desígnios autônomos, aplica-se a regra do concurso material, artigo 86, que não poderá exceder a pena que seria cabível pela regra do concurso material, in verbis:
Art. 87. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do concurso material.
Na parte especial, o crime de estelionato continua com a descrição no mesmo dispositivo legal, artigo 171, com acréscimo de algumas novidades dentre elas o tipo penal de estelionato massivo, quando a fraude é destinada a produzir efeitos em número expressivo de vítimas, ressalvada a hipótese do concurso formal, quando aplicável.
Assim, nos casos de estelionato massivo, tipificado no § 2º, do artigo 171, a pena é aumentada de um a dois terços se a fraude é destinada a produzir efeitos em número expressivo de vítimas, ressalvada a hipótese do concurso formal, quando aplicável.
Em relação ao crime continuado, erro na execução e resultado diverso pretendido, o PLS nº 236/2012 trata os institutos respectivamente nos artigos 88, 89 e 90, com modificações relevantes acerca da continuidade delitiva nos crimes dolosos que afetam a vida, bem como as de estupro, na inteligência do artigo 88, § 2º do PLS nº 236/2012, in verbis:
Art. 88. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
§ 1º Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias do fato, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do concurso formal de crimes.
§ 2º Aplicam-se cumulativamente as penas dos crimes dolosos que afetem a vida, bem como as do estupro.
Art. 89. Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se às disposições do erro sobre a pessoa. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplicam-se as regras do concurso formal de crimes.
Art. 90. Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplicam-se as regras do concurso formal de crimes.
Quanto ao limite de cumprimento da pena de prisão o PLS nº 236/2012 continua como regra o tempo não superior a trinta anos de prisão justamente como tratado hoje no artigo 75 do Código Penal. Uma inovação do Projeto de Reforma vem previsto no artigo 91, § 2º, segundo o qual, sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, com limite máximo de quarenta anos, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.
Assim, tem-se o novo regramento acerca do limite de cumprimento da pena, a saber:
Art. 91. O tempo de cumprimento da pena de prisão não pode ser superior a trinta anos.
§ 1º Quando o agente for condenado a penas de prisão cuja soma seja superior a trinta anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.
§ 2º Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, com limite máximo de quarenta anos, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.
CONCURSO DE INFRAÇÕES
Art. 92. No concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a pena mais grave.
O conflito aparente de normas (concursus normarum) sempre ocupou posição doutrinária no direito penal pátrio.
O sistema jurídico, dada a sua pluralidade normativa, deve ter em princípio coerência, unidade, visando estabelecer a segurança jurídica. Segundo “BELING”, conflito aparente de normas é a relação que medeia entre duas leis penais, pela qual, enquanto uma é excluída, a outra é aplicada.
A sistematização científica e distinção do concurso ideal de delitos remonta aos estudos de ADOLF MERKEL e KARL BINDING. Fundamenta-se no princípio da coerência sistemática e na máxima “NE BIS IN IDEM”. O anteprojeto de Código Penal de 1963, de Nelson Hungria, em seu artigo 5º, expressamente dizia a respeito do conflito aparente e normas, apontando como ELEMENTOS DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS: a unidade do fato (somente uma infração penal), a pluralidade e normas (duas ou mais normas pretendendo regulá-lo), a aparente aplicação de todas as normas à espécie (incidência plurinormativa apenas aparente) e a efetiva aplicação de apenas uma delas (somente uma norma é aplicável, razão pela qual diz-se ser o conflito aparente).
Nesta seara, a resolução do concurso aparente de normas, deve pautar-se na observância dos critérios da especialidade, subsidiariedade e consunção.
O CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE (lex specialis derogat legi generalis), considera especial a norma que possui todos os elementos da geral e mais alguns, denominados especializantes, que trazem um minus ou um plus de severidade. Exemplos: homicídio e infanticídio.
O CRITÉRIO DA SUBSIDIARIEDADE (lex primaria derogat legi subsidiariae), opera de forma auxiliar, subsidiária ou residual para as hipóteses que não são objeto de proteção de outro dispositivo, chamado principal, indicando a aplicação de uma lei quando outra não puder ser aplicada, quer por disposição explícita (subsidiariedade expressa ou formal), quer por força de interpretação lógica (subsidiariedade tácita, implícita ou material). Verifica-se a subsidiariedade expressa quando o próprio texto legal condiciona sua aplicação à inaplicabilidade de outro, vejamos: Exemplos do Código Penal: Artigo 129, § 3º (lesão corporal seguida de morte); Artigo 132 (perigo para vida ou saúde de outrem); Artigo 249 (subtração de incapazes).
Já a subsidiariedade implícita constata-se quando o tipo subsidiário, de menor gravidade, não subordina sua aplicação à subsistência do principal. Aplica-se um tipo penal na medida em que outro não possa ser utilizado, como resultado do sentido e do fim das normas em concorrência. Exemplos: o delito do artigo 163 (dano) em relação ao do artigo 155, § 4º, I (furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa); a violação de domicílio (artigo 150, Código Penal) em relação ao furto (artigo 155, Código Penal); a subtração de incapazes (artigo 249, Código Penal) em relação ao sequestro (artigo 148 do Código Penal) ou redução à condição análoga à de escravo (artigo 149, Código Penal).
Por sua vez, o CRITÉRIO DA CONSUNÇÃO (lex consumens derogat legi consumptae) preceitua que ocorre a relação consuntiva, ou de absorção, quando fato definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime. Os fatos se apresentam: de minus a plus; de conteúdo a continente; de parte a todo; de meio a fim; de fração inteiro.
A par disso, a consunção se verifica nas hipóteses de crime progressivo, progressão criminosa e crime complexo.
a) Crime Progressivo ocorre quando o agente, objetivando, desde o início, produzir o resultado mais grave, pratica de meios sucessivos, crescentes violações ao bem jurídico. Há uma única conduta comandada por uma só vontade, mas compreendida por diversos atos. Exemplo: homicídio.
São, assim, elementos do crime progressivo:unidade de elemento subjetivo (desde o início, há uma única vontade); unidade de fato (há um único crime, comandado por uma única vontade); pluralidade de atos (se houvesse um único ato, não haveria que se falar em absorção); progressividade na lesão ao bem jurídico (os atos violam de forma cada vez mais intensa o bem jurídico, ficando os anteriores absorvidos pelo mais grave).
b) Progressão criminosa em sentido estrito: o agente deseja inicialmente produzir um resultado e, após atingi-lo, decide prosseguir e reiniciar sua agressão produzindo uma lesão mais grave. Exemplo: imagine o marido que queira inicialmente ferir sua esposa, isto é, cometer um crime de lesão corporal. Posteriormente, com a vítima já prostrada ao solo, surge a intenção de matá-la, o que acaba sendo feito.
Em consequência da progressão criminosa em sentido estrito, os fatos anteriores ficam absorvidos. Embora haja condutas distintas (cada sequência de atos comandada pela vontade corresponde a uma conduta, logo, para cada vontade, uma conduta), o agente só responde pelo fato final, mais grave.
São, assim, elementos da progressão criminosa em sentido estrito:
- PLURALIDADE DE DESÍGNIOS: o agente inicialmente deseja praticar um crime e, após cometê-lo, resolve praticar outro de maior gravidade, o que demonstra existirem duas ou mais vontades
- PLURALIDADE DE FATOS: ao contrário do crime progressivo, em que há um único fato delituoso composto de diversos atos, na progressão criminosa existe mais de um crime, correspondente a mais de uma vontade
- PROGRESSIVIDADE NA LESÃO AO BEM JURÍDICO: o primeiro crime, isto é, a primeira sequência voluntária de atos, provoca uma lesão menos grave ao que o último e, por essa razão, acaba por ele absorvido.
- FATO ANTERIOR (“ANTE FACTUM”) NÃO PUNÍVEL: Sempre que um fato anterior menos grave for praticado como meio necessário para a realização de outro mais grave, ficará por este absorvido. É o que ocorre no caso de o sujeito ter em seu poder “instrumentos empregados usualmente na prática do crime de furto” (LCP, art. 25) e, em seguida, praticar uma subtração punível.
- FATO POSTERIOR (“POST FACTUM”) NÃO PUNÍVEL: Ocorre quando, após realizada a conduta, o agente pratica novo ataque contra o mesmo bem jurídico, visando apenas tirar proveito da prática anterior. O fato posterior é tomado como mero exaurimento. Exemplo: após o furto, o agente vende ou destrói a coisa.
De outra senda, diz-se:
c) Crime Complexo: quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes (Código Penal, artigo 101). É o que resulta da fusão de dois ou mais delitos autônomos, que passam a funcionar como elementares ou circunstâncias no tipo complexo.
Lado outro, a chamada alternatividade ocorre quando a norma descreve várias formas de realização da figura típica, e que a realização de uma ou de todas configura um único crime.
São, assim, chamados tipos mistos alternativos, aqueles que descrevem crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado, a exemplo do artigo 33 da Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos e Entorpecentes), que descreve dezoito formas de prática do tráfico ilícito de drogas, de tal sorte que a realização de uma ou de várias modalidades configurará, indistintamente, sempre um único crime.
O PLS nº 236/2012 trata do conflito de normas no artigo 12, que passa a prevê textualmente o princípio da especialidade no § 1º e da consunção criminosa no § 2º do mesmo dispositivo legal.
A conduta posterior não punível também vem prevista no artigo 12, § 3º do PLS 236/2012.
Parte da doutrina pátria também sustenta o recurso do princípio da alternatividade como forma resolução do conflito de normas, fato que agora é disciplinado no § 4º do Projeto de Lei em comento. A par disso, os casos a seguir, restringiam-se ao âmbito doutrinário:
CONFLITO DE NORMAS
Art. 12. Na aplicação da lei penal o juiz observará os seguintes critérios, sem prejuízo das regras relativas ao concurso de crimes:
§ 1º Quando um fato aparentemente se subsume a mais de um tipo penal, é afastada a incidência:
a) do tipo penal genérico pelo tipo penal específico;
b) dos tipos penais que constituem ou qualificam outro tipo.
CONSUNÇÃO CRIMINOSA
§ 2º Não incide o tipo penal meio ou o menos grave quando estes integram a fase de preparação ou execução de um tipo penal fim ou de um tipo penal mais grave.
§ 3º Não incide o tipo penal relativo a fato posterior quando se esgota a ofensividade ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal anterior mais gravoso.
CRIME DE CONTEÚDO VARIADO
§ 4º Salvo disposição em contrário, o tipo penal constituído por várias condutas, alternativamente, só incidirá sobre uma delas, ainda que outras sejam praticadas sucessivamente pelo mesmo agente e no mesmo contexto fático.
Concluindo, percebe-se em breves estudos, que a norma codificada, ao menos nos tópicos aqui examinados, atendeu aquilo que dela se espera: trazer para o seu interior matérias consolidadas pela doutrina e pela jurisprudência. É facilmente notado que alguns institutos pacificados doutrinariamente são tratados pelo PLS 236/2012, a exemplo do conflito de normas que passa a adotar expressamente o princípio da especialidade, da alternatividade nos crimes de conteúdo misto alternativo ou de ação múltipla, bem assim, da conduta posterior não punível.
No concurso de pessoas também se observam a codificação de entendimentos já pacificados pela doutrina, como adoção da teoria dualista em relação à autoria, que define claramente a posição de autores, coautores e partícipes na empreitada criminosa, bem assim, assume nitidamente a preferência pela Teoria formal-objetiva para os autores que efetivamente praticaram a conduta expressa no núcleo do injusto penal e pela Teoria material-objetiva que segundo a qual autor ou coautor, numa formulação extensiva de autor, seria aquele não só o que realiza a conduta típica, como também aquele que concorre com uma causa para o resultado.
Por derradeiro, cabe ressaltar que a Comissão de Notáveis aderiu a Teoria do Domínio do fato, idealizada pelo finalismo de Hans Welzel em 1939, segundo a qual também é autor do delito aquele que na ótica, do então jovem professor alemão, “quem ocupasse uma posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um crime, tem de responder como autor e não só como partícipe, ao contrário do que entendia a doutrina dominante na época“.
Em entrevista recente ao Núcleo de Estudos Penais, ao ser questionado sobre a teoria do domínio do fato, o Professor Claus Roxin, assim respondeu:
“A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-socialismo. A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido delitos pelas próprias mãos – por exemplo, o disparo contra judeus -, enquanto sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser responsabilizado como autor. E quem ocupa uma posição dentro de um aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da época. De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria, que, no entanto, foi cada vez mais aceita pela literatura jurídica. Ao longo do tempo, grandes êxitos foram obtidos, sobretudo na América do Sul, onde a teoria foi aplicada com sucesso no processo contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, considerando seus integrantes autores, assim como na responsabilização do ex-presidente peruano Alberto Fujimori por diversos crimes cometidos durante seu governo. Posteriormente, o Bundesgerichtshof [equivalente alemão de nosso Superior Tribunal de Justiça -STJ] também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto”.
Em face de todo o exposto, a conclusão a que se chega alinha-se ao necessário e urgente processamento da reformulação da legislação penal pátria, em vigor há tempo estimado a mais de oitenta anos, vez que inimaginável e verdadeiro retrocesso conceber uma norma penal tão estática, paralisante e retrógrada, para regular relações sociais cada vez mais velozes e dinâmicas, que se modificam a cada amanhecer, num simples abrir e fechar de olhos.
Noutro giro, razoável não é a estipulação de um prazo de apenas noventa dias para a entrada em vigor de uma legislação penal codificada, dada a tamanha repercussão social que as reformas pretendidas hão de imprimir no contexto social, há muito estanque.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Decreto nº 2848/1940. Define o Código Penal Brasileiro. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
RELATÓRIO FINAL – que inclui o histórico dos trabalhos, o anteprojeto de novo Código Penal e a exposição de motivos das propostas efetuadas.
SOLER, S. Derecho Penal argentino. Buenos Aires: TEA, 1978. t. 2.
http://nepuem.blogspot.com.br/2012/11/entrevista-com-claus-roxin-comentarios.html, acesso em 14 de abril de 2013, as 21h:18min.
Excelente artigo. Parabéns.