As três revoltas de Jovelino

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

A primeira foi aos nove anos. Ele resmungou qualquer coisa quando seu pai, Francisco, avisou que a família devia se mudar para o outro lado do cafezal. O pai de Jovelino vivia ali desde menino; ficou na casa depois que os pais morreram e ali seguia com sua prole. Continuava a relação que vinha de longa data como agregado nas terras de Seu Serafim, grande proprietário que fundou o Bom Jesus, trouxe gente, padre e venda.

Ninguém nas imediações sabia dizer desde quando a família daquele parrudo fazendeiro de bigode fino havia ali fincado suas posses. Tudo quanto era morador da região, assim como Francisco, trabalhava para ele, na colheita do café, na lida do gado, na destoca ou na plantação. Seu Serafim foi o primeiro a ter automóvel, depois o rádio. Assim seria também, mais adiante, com a televisão e o trator.

Foram quatro vergões nas pernas deixados pela vara de marmelo. Francisco preferia castigar assim os filhos, já que chicotear as costas lhe parecia excessivo. “Na sua idade, seu bisavô apanhava era no tronco!”, gritou a Jovelino. O menino não entendia por que tinham que sair da casinha onde havia crescido. Calou-se e aceitou; única opção que restava. Os irmãos mais novos, diante da cena, desistiram de qualquer resmungo.

Para Seu Serafim, retirar a família de Francisco da casinha era tão natural quanto substituir um mourão da cerca. O açude iria alagar grande parte do descampado e a velha casa seria encoberta. A mudança foi feita de carroça: pratos e panelas, os varões da cama, os velhos colchões de palha, mesa e cadeiras e algumas miudezas.

A segunda revolta foi quando Jovelino já era rapazinho. A enchente tinha arrebentado o açude, alagando toda a baixada da fazenda. Ali, além da casinha de adobe para onde a família havia sido deslocada, ficava o curral, a meia légua da sede da propriedade.

Depois de sair correndo com a família e tirar o que foi possível da casa, Francisco voltou para abrir a porteira do curral onde estavam os bezerros. Conseguiu salvar todos, mas se embaraçou no velho arame farpado. A infecção dos graves ferimentos não lhe deu mais que dois meses de vida. Nem os remédios de Dr. Valfredo, que passava pela região de tempos em tempos no seu Ford Rural azul, nem o emplastro de folhas da velha Luzia deram resultado.

Aquela foi uma revolta silenciosa, engolida a seco. Jovelino não soube bem com quem e nem como se rebelar diante da morte do pai. Mesmo com sua rigidez, aquele homem era sua referência e lhe parecera sempre imortal. Agora, era fazer nova mudança pra outra casinha, assumir o lugar do pai no trabalho com o gado, cuidar da mãe de saúde desgastada e introduzir os irmãos na labuta.

Foi bem depois, quando Jovelino já tinha seus três filhos e uma filha, a terceira vez que se revoltou. O mais velho havia brigado por motivo besta com o neto de Seu Serafim na visita quinzenal que o futuro herdeiro da fazenda costumava fazer com a família, vindo de São Romão. Jovelino arrastou o menino pelas orelhas até a casa enquanto esbravejava. Era exatamente o filho que havia dado para Seu Serafim batizar. Fez o menino pedir desculpas ao padrinho e garantiu que isso nunca mais aconteceria.

E cuidou das cercas, curou o gado, reformou as porteiras do curral, reforçou o açude, aparou a grama da sede e passou a seguir as ordens do filho de Seu Serafim quando este morreu. Casou filhos e filha com filhas e filho de outros moradores do Bom Jesus. Ganhou cabelos brancos; enterrou a mãe e, passado não muito, também a esposa depois de longa enfermidade.

A casinha de adobe se desgastou com o tempo, assim como o seu morador. Três dos filhos ficaram pela região, seguindo a sina que vinha de longa data de trabalhar na fazenda em troca de onde morar. Apenas a mais nova não quis ficar na roça e se mudou para São Romão.

Foi ela quem acolheu o velho Jovelino, mesmo a contragosto, depois que a fazenda foi toda refeita. Novos rebanhos e amplas pastagens mudaram a paisagem e, como um menino que apaga o desenho de um papel, fizeram sumir a mata, a plantação e todas as casinhas de adobe, espalhando pelo mundo seus moradores como formigas que têm o formigueiro destruído. Ordenhadeiras mecânicas e grandes resfriadores anunciavam novos tempos.

Foi numa manhã chuvosa que Jovelino apeou do ônibus no pé do morro onde morava a filha com marido e dois pequenos. Toda sua mudança na mala herdada do pai. Restou-lhe o quartinho dos fundos do qual saia pouco. A cidade lhe parecia uma selva, com barulho e movimento que tiravam o seu sossego. Dias e meses se arrastaram.

Jovelino não chegou a ver manhã do dia em que se revoltaria pela quarta vez. Filha e genro haviam combinado de colocá-lo no asilo municipal, já que não tinham condições de mantê-lo mais. Na sua última madrugada, Jovelino não sonhou com o pai, nem com a casinha da infância, nem com sua esposa. Foi uma noite como outra qualquer. Morreu silenciosamente ao raiar do dia.

Naquela hora, na fazenda do herdeiro de Seu Serafim, nenhum passarinho cantou diferente, nenhum vento soprou, o gado gordo não mugiu, as águas do açude não se agitaram. Nada alterou o dia do herdeiro de Seu Serafim que, como sempre, saiu em sua caminhonete para ver o extenso rebanho.

No velório, apenas a família da filha, o padre e algum curioso. Os demais filhos de Jovelino não puderam comparecer, labutando que estavam pela vida no trabalho pesado de algum canavial a muitos quilômetros dali. Continuavam, assim, uma tradição que vinha de longa data.

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