Tempos de guerra

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

É sempre muito difícil entender um fato histórico em profundidade enquanto ele se desenrola. Além disso, a visão crítica sobre qualquer assunto exige um movimento duplo de aproximação e distanciamento. Tal esforço supõe que, no caso da invasão da Ucrânia – como seria em qualquer conflito bélico – olhemos com toda atenção aos fatos concretos que ocorrem e, ao mesmo tempo, distanciemo-nos deles para vê-los na relação com outros fatos do momento e com outros momentos da história.

O que proponho aqui são apenas pinceladas. De modo muito simples, o tal movimento duplo a que me refiro nos permite dizer que, olhada em perspectiva de longa duração histórica, a guerra atual é mais um evento de confrontação de exércitos; mas, se olhada nas suas especificidades, trata-se de uma guerra singular ou, ao menos, com possíveis efeitos singulares em relação a outras. Sugiro três passos de reflexão.

Primeiro: a guerra não é novidade. Povos milenares, impérios antigos ou mesmo os países na forma moderna que conhecemos sempre travaram guerras. Acontece que os últimos séculos apresentam elementos muito peculiares em relação às épocas anteriores. Estabelece-se uma forma de organização da vida, da produção, do trabalho e dos governos sob a lógica mercantil, no acúmulo de lucros por parte de quem os acessa e no prejuízo sofrido por parte de quem não os têm. Numa palavra, o capitalismo.

Segundo passo: o século XX eleva a guerra a outro patamar. Por se desenvolverem sob a lógica capitalista, a Primeira Guerra e, sobretudo, a Segunda, têm como elemento fundamental o avanço técnico-científico. O fato mais importante, em termos bélicos, é sem dúvida o desenvolvimento da bomba atômica.

Nesse sentido, desde finais dos anos 1950 ressoam as reflexões do filósofo alemão Günther Anders sobre a “era atômica”. Para ele, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, sobretudo, com a criação da bomba atômica, atingimos uma espécie de ponto sem retorno. O “tempo do fim” está dado a partir do momento em que a humanidade deliberadamente se torna capaz de um autoextermínio. A bomba é fator incontornável: não dá para desinventá-la. O novo tempo do mundo, para usar uma expressão do filósofo brasileiro Paulo Arantes, não pode ser recuado. Ou seja, o que podemos é administrar o risco, adiando ao máximo o fim.

Por assustador que possa parecer, a reflexão de Anders se mostra, infelizmente, muito atual porque, além da bomba atômica, temos a galopante catástrofe ambiental. Todo o avanço técnico que produzimos nos possibilitou o acesso a bens de consumo na mesma medida em que nos torna cada vez mais capazes de acabar com as formas de vida na terra.

Terceiro passo: a invasão da Ucrânia é certamente mais do que aparece nos noticiários. Estão em campo, além dos envolvidos diretamente, importantes atores históricos do pós Segunda Guerra como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que congrega as grandes potências ocidentais sob o comando dos Estados Unidos. Para ser mais exato, a Ucrânia aparece como um território no qual se dá o confronto entre forças da OTAN e Rússia, com seus respectivos aliados de hoje e de amanhã. Por isso não está de forma alguma descartado o risco de ampliação do conflito para níveis mundiais.

Para além das questões humanitárias imediatas às quais devemos estar sensíveis em qualquer situação ou local, o fator que me parece merecedor de toda a nossa atenção – e que torna, de fato, essa guerra singular – é que voltamos à ameaça atômica. A bomba ressurge como fator importante, seja de retórica, seja de efeito concreto. Pouco importa. O determinante é que, tal como nos anos 1940 ou na chamada crise dos mísseis em 1962 entre os EUA e a então União Soviética, a capacidade de autoextermínio da humanidade está de novo colocada no horizonte.

A bomba pode, por certo, não ser ativada. Por outro lado, ela pode. Essa contradição se torna o ponto mais dramático dos tempos de guerra que correm neste início de ano. Quem decide apertar ou não o botão? Estamos diante de líderes que representam uma população emancipada e livre que define os rumos de seus países por critérios humanitários ou de chefes de Estado que pensam unicamente pela lógica da dominação de território, recursos e poderio comercial?

Se corrermos os olhos pelas últimas décadas veremos uma série de invasões de países, invariavelmente sob o pretexto da pacificação ou da proteção da população civil. Síria, Somália, Iêmen, Iugoslávia, Iraque etc. Se puxarmos a ficha de países que agora se propõem arautos da paz, como os da Europa ou os Estados Unidos, encontraremos potências militares capazes dos atos atrozes. Rússia e China não seriam, por seu turno, arautos da santidade.

É esse um possível e, por certo, limitado balanço sobre o atual conflito na Ucrânia: ao recurso milenar da guerra se junta, nos últimos séculos, seu uso para fins estritamente comerciais; em nossos dias, retoma-se a ameaça do uso de bombas atômicas que acreditávamos esperançosamente ter ficado para trás; como se não bastasse, tudo isso se dá em avançada degradação ambiental e, por isso, crescente valorização e disputa de recursos naturais; por razões óbvias, os senhores da guerra, sejam quais forem, não almejam liberdade, bem estar das populações ou qualquer outro argumento simpático que usem. Para onde vamos? Não sei. O que sei é que em tempos de guerra é bom que estejamos atentos ao conflito imediato, mas também ao que ele representa no arranjo entre forças econômicas e militares de ontem e de hoje.

Por isso penso ser discutível a ideia tão propagada de se escolher um lado do conflito atual, representado diretamente por Rússia e Ucrânia ou, o que talvez fosse mais preciso, entre Rússia e OTAN. Isso não significa, evidentemente, insensibilidade quanto à guerra. Ao contrário: o que a Ucrânia passa hoje, poderão passar amanhã outros países com recursos naturais de alto valor comercial. Grandes potências se dedicam a manter ou expandir sua força. Por isso, na lógica concorrencial entre elas, tudo é campo de disputa. Do subsolo africano ou do Oriente Médio à floresta amazônica, nada ficará impune à volúpia dos empreendimentos capitalistas, aos quais os chefes de Estado servem, mesmo quando não o dizem.

Para além de nossas simpatias ou antipatias, o decisivo é que nenhum dos “lados” parece representar uma posição emancipatória para a humanidade, mas sim faces distintas do mesmo projeto destrutivo do capitalismo avançado. Talvez fosse melhor falar de escolha por outro modelo de civilização. Mas aí teríamos que repensar o próprio capitalismo e o lugar que, nele, a guerra ocupa.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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