Tempos de política

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1932
José Carlos Freire.
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Já se vão mais de duzentos anos que a ideia de política se vincula diretamente a um aparato institucional com leis e estatutos, organizando a vida social. Sinal disso é o fato de que “participação política” tenha se popularizado como o caminho que uma pessoa trilha na militância partidária ou na aproximação com cargos no poder legislativo ou executivo. Nesse sentido, a ideia de politização esteve geralmente relacionada à busca de influência nos rumos de uma cidade, um estado, um país.

Politizada seria aquela postura contestadora das injustiças e defensora das políticas públicas, sobretudo para a população mais pobre como forma de diminuição da desigualdade social – isso associado a uma noção de esquerda. Mas politizada também poderia ser a pessoa que defende o livre mercado, a diminuição do papel no poder público e o aumento da iniciativa privada, o que configura em linhas gerais uma visão de direita. Dois caminhos, por assim dizer, para a felicidade humana, mas ambas dentro de uma lógica comum a que podemos chamar, sem grandes problematizações, de democracia ou ordem democrática, pois supõem a submissão às leis e convenções.

A disputa entre uma perspectiva e outra configurou as grandes linhas da luta política nestes dois séculos do ciclo histórico de Estados nacionais. Enquanto as constituições e poderes organizados mediavam a vida social, as eleições, via de regra, constituíram-se como o momento culminante de processos de embate ao mesmo tempo em que abriam ciclos distintos do anterior. Alguns destes de importante avanço do bem-estar social, outros de inegável ofensiva do mercado; outros até de caráter intolerante, autoritário ou mesmo totalitário. Novo ciclo, novo equilíbrio.

É claro que houve também contextos em que grupos ou movimentos não apenas disputaram internamente o jogo, mas buscaram questionar suas regras e propuseram algo além do sistema político tradicional. Tais processos de aspecto revolucionário, marcadamente de esquerda, resultaram, quase sempre, em uma acomodação na etapa seguinte à lógica predominante. Retoma-se, com o tempo, o papel dos partidos e das eleições e o jogo segue. Note-se, porém, que mesmo em tais momentos de tentativa de ruptura da ordem democrática convencional, não se abandonou a meta, que continuava a ser o ideal moderno de felicidade coletiva. Em que pese os problemas dos processos revolucionários, sobretudo no século passado, eles se constituíram como tentativa de realização plena daquilo que se almejava, sem êxito, por vias eleitorais e institucionais. Em outras palavras, tentava-se, por revolução, realizar o que a democracia tradicional prometia e não entregava.

O que temos de novo nas últimas décadas é certo embaçamento desse cenário. Ampliou-se a importância de grupos e movimentos que destoam da velha lógica de luta política e, quando se colocam contra o sistema, não o fazem porque almejam levar a fundo o projeto de bem-estar de todos, mas sim por uma difusa noção de liberdade individual, valores morais ou interesses corporativos que implicam em intolerância, negação das diferenças e mesmo extermínio de adversários.

A isso que ocorre de maneira variada mundo afora se convencionou chamar de ascensão da extrema direita. Tais posições não surgiram de agora, obviamente. Mas é notório que sua relevância se tem ampliado. Em que medida isso implica na falência da velha lógica democrática? Seria uma onda de reação a tudo que se configurou como lutas emancipatórias pós-1968? Um reflexo do colapso do capitalismo? Estas e outras perguntas precisam ser enfrentadas com urgência.

No caso do Brasil não é diferente. Temos visto um crescimento do debate, das discussões sobre política nos últimos anos; porém, isso não significa que a democracia se tenha ampliado, para usar um velho jargão; ao contrário, há um questionamento de tudo que constitui a institucionalidade democrática. E, tal como em outros países, não se trata de uma situação revolucionária em que forças de esquerda anseiam levar a fundo a busca da felicidade coletiva no combate às desigualdades: ao contrário, vivemos a versão local do que mundialmente se expressa como extrema direita. Para onde vamos? Eis um ponto que precisa ser refletido com toda a atenção.

Das muitas e necessárias contribuições para o entendimento dos desafios brasileiros vale destacar o trabalho do sociólogo Gabriel Feltran que há anos realiza pesquisas sobre as periferias, sobretudo em São Paulo. Nas trilhas de seu estudo, é possível notar uma mudança do jogo político brasileiro nas últimas três décadas. Após a redemocratização, parecíamos estar na direção clássica segundo a qual os agentes políticos principais devem representar os conflitos da base social, constituindo, assim, propostas distintas para os rumos do país. Pensemos, por exemplo, nas eleições de 1989, na qual se aglutinaram dois grandes projetos no segundo turno: de um lado, a candidatura de Lula, representando os anseios da classe trabalhadora e a ampliação de direitos sociais sinalizados na Constituição de 1988; de outro, a candidatura Collor, marcadamente neoliberal, aglutinando forças do mercado e velhas oligarquias.

Ocorre que nas eleições seguintes a discussão deixou de enfatizar projetos de país e os agentes políticos fundamentais foram, aos poucos, perdendo a vinculação com os conflitos da base social. Uma longa autocrítica carece ainda de ser feita, em especial pelos partidos de esquerda, mas o fato é que a luta política se reduziu à disputa eleitoral. Como recorda Feltran, nesse mesmo contexto, há um processo silencioso, de baixo pra cima, em que grupos e organizações diversas criaram lentamente, ao seu modo, uma disputa por espaço, poder e mercado desde a base, por vias legais ou ilegais. Tais forças sociais chegaram, na segunda metade da década passada, com todo vigor ao legislativo e ao executivo municipais, estaduais e federais.

Nesse sentido, o entendimento da versão brasileira da extrema direita exige considerar, necessariamente, a importância de tais grupos e organizações. É preciso ver em que medida, por exemplo, as chamadas bancadas nas Assembleias e no Congresso representam conteúdos programáticos para o estado e o país ou simplesmente interesses particularistas, familiares ou corporativos. Que quadros e quais projetos estão, de fato, sendo eleitos?

Como nos demais países que passam por conjunturas eleitorais recentes, parece ser esse um componente fundamental das eleições de 2022 no Brasil. Elas se mostram como um momento de embate e enfrentamento, predominando não os projetos para o país ou caminhos de arranjos estruturais, mas aspectos ideológicos difusos e pouco aprofundados que se relacionam a interesses de grupos. Para estes, o Estado é um mero instrumento a ser usado com fins particulares. Concomitantemente, a ausência de uma maior consciência e discussão ampliada sobre nossos desafios básicos reduz a luta política, no dia a dia, ao confronto agressivo de opiniões e escolhas pessoais. São tempos de política, mas, infelizmente, como pouca politização. É o que temos pra hoje. E amanhã, o que será?

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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