O coração selvagem

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José Carlos Freire
Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

“Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”. Eis uma das elaborações de Joana em seus incontáveis fluxos de consciência presentes em Perto do Coração Selvagem, o primeiro romance de Clarice Lispector, publicado em 1943, quando a autora tinha apenas vinte e três anos. A proximidade entre narradora e personagem é tão grande – algo inovador na literatura brasileira produzida até então, como notou em primeira hora Antônio Cândido – que não são poucos os momentos nos quais sequer percebemos a passagem de uma à outra.

E isso não é pouca coisa. Esse “romance de aproximação”, como nomeou o referido crítico, arranca-nos de tal forma de uma leitura superficial que, como marinheiros arremessados ao mar pelo peso da âncora, não nos resta outra coisa a não ser acompanhar a história com outra chave: a da profundidade.

Já nas primeiras páginas nos deparamos com Joana criança, na presença do pai. Se a inquietude e a curiosidade da menina nos parecem extraordinárias e incomuns, por um lado, de outro nos recordam que também éramos assim quando crianças. Eis aí uma proeza dessa jovem autora de então que, ao longo da carreira, não fará outra coisa senão aperfeiçoar tal método: seus personagens nos parecem, simultaneamente, estranhos e íntimos; diferentes de nós e nossos iguais.

O efeito é inevitável: acompanharemos os passos de Joana com a incômoda sensação de que o romance nos faz também buscar alguma coisa, algo da ordem do não nomeado, do mistério. Aliás, para Joana, “o mistério explica mais que a claridade”. Nesse sentido, a imponente figura do mar e a praia como lugar da ritualística de mergulho no mistério, tornam-se elementos valiosos no romance. Antecipando a simbologia da água que estará presente até seus últimos escritos, Clarice nos sugere o exercício de investigação interior, algo que explorará em diversos contos e, de modo contundente, em romances como A paixão segundo G.H, A maçã no escuro e Água viva.

Para além desse aspecto filosófico grandioso da narrativa – a busca de si – ainda sobram elementos no romance que o tornam especial. Em termos formais temos a proposta de alternância entre passado e presente, o que não apenas quebra a linearidade da narrativa, mas também nos indica a simultaneidade dos tempos: “eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria”.

Quanto ao conteúdo, surgem temas que para nós podem soar comuns, mas que não o eram na longínqua década de 1940. Em especial, a reflexão sobre o papel tradicional da mulher, tendo como pano de fundo o casamento como instituição. Joana não se enquadra em nenhum dos dois e não tem medo de se perguntar: “Como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? Como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes?”.

Ainda que não tenhamos uma elaboração teórica explícita sobre o que hoje entendemos como questões de gênero, o que não só seria anacrônico, mas possivelmente retiraria a força estética da narrativa, é notável que Clarice exponha com um vigor impressionante e sem fantasias aspectos como o abismo entre adultos e crianças, os dramas da adolescência, o desejo feminino, a fragilidade masculina, a maternidade, a solidão, a infelicidade que tantas vezes acompanha uma relação amorosa etc.

Dizia acima da não linearidade do romance. Parece-me que, em razão disso, interessa menos nele o transcurso dos fatos e mais o modo como Joana os vai percebendo e interpretando, por vezes sem compreendê-los totalmente. E pergunto ao leitor e à leitora: não é assim também conosco? Não há como que uma avalanche de eventos que vai nos engolindo e, por pouco, não nos sufoca? Eis, para mim, um dos dois elementos mais caros do romance: a desconstrução da ideia de uma biografia regular e previsível. A vida é mais mistério que claridade…

O segundo elemento é o que subjaz ao título. Em Joana, tal como em nós, há uma força interna que clama por vir à tona, uma dimensão “selvagem” que não combina ou pelo menos se choca com o cotidiano comum das convenções sociais, com a regularidade das instituições. Há quem passe pela vida deixando esse animal enjaulado, por medo do que pode ocorrer caso ele se solte: “Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto”.

Porém, há também quem siga adiante e enfrente esse medo tal como a protagonista: “…um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, (…) eu serei forte como a alma de um animal”. Esta é Joana. Ela quer mais da vida do que as demais pessoas comumente querem; ela é complexa, contraditória, não tem medo de sentir o que sente, de dizer o que pensa.

Tudo isso nos sugere, por meio da leitura, uma espécie de encontro – ou reencontro – com a humanidade de cada um e cada uma de nós que é também ambígua, fragmentada e incompleta. Assumir-se desse modo é sair do lugar comum, é aproximar do coração selvagem da vida. Arriscado? Assustador? Certamente. Porém, talvez a única maneira de se ter uma vivência minimamente autoral e emancipada. A propósito, “Coração selvagem” é o título de uma belíssima canção de Belchior, o compositor brasileiro que fazia como poucos a ponte de via dupla entre música e literatura. A certa altura da canção, em plena sintonia com o livro de Clarice Lispector, diz o compositor: “E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”. Haverá algo mais urgente que isso?

Ilustração: Vinícius Figueiredo. Sugestão de leitura: “Perto do coração selvagem” (1943), de Clarice Lispector. Publicado pela Ed. Noite. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com.

1 COMENTÁRIO

  1. É de grande audácia e coragem uma jovem mulher, sobretudo escritora, em plena década de 1940, escrever um livro falando de liberdade e de emancipação feminina, quando a mulher era criada e educada para o casamento e as tarefas do lar. Esse livro é uma obra revolucionária!

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