O histórico sociocultural: pistas sobre a violência contra as mulheres do Mucuri

0
672
Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

O histórico de ocupação dos territórios representa um elemento fundamental para a mais precisa leitura sobre a realidade objetiva das populações, estreitamente associada à dinâmica das relações constituídas entre distintos grupos sociais e entre gêneros. Conforme a historiadora norte-americana Joan Scott, o termo gênero “[…] é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. […]” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” – a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres.

O Vale do Mucuri está entre as regiões mais empobrecidas do Estado de Minas, compondo municípios entre os mais baixos índices de desenvolvimento humano do estado, e onde a cultura patriarcal sob o tripé do clientelismo, patrimonialismo e compadrio permanecem na base das relações sociais. Traduzindo para a linguagem popular, quero dizer que vivemos em uma região onde as mulheres ainda têm imensa dificuldade de se posicionar frente à sociedade por não serem devidamente reconhecidas como pessoas com plenas capacidades pessoais e profissionais. Por aqui, impera o desrespeito velado, que se traveste de gentileza.

Essas formas de relacionamento da sociedade para com a figura feminina não ocorrem apenas por parte de homens, mas também, por parte de outras mulheres. O problema está na estrutura, ou seja, no alicerce da sociedade e se torna mais intenso em regiões onde as mulheres demoram mais para perceberem que são tratadas, e às vezes, tratam outras mulheres de forma desigual.

Nesse contexto é que a violência é tolerada, porque torna-se bastante natural a culpabilização das mulheres pelo fracasso das relações conjugais e/ou familiares. Assim, a socióloga paulista Heleieth Saffioti explica que “Partindo da premissa, verdadeira, em qualquer parte do mundo em maior ou menor grau, de que uma pequena fração da violência cometida por homens contra mulheres chega às autoridades policiais, esta cifra é extraordinariamente alta”. Isso indica que a demanda real dessas violências pode ser significativamente superior ao que é possível notificar atualmente.

Por aqui, as relações foram constituídas sob trocas e reciprocidade, em regra, pela figura masculina, reproduzidas por gerações e naturalizadas no âmbito do território. Esse histórico de formação e ocupação reforçou a hegemonia de patriarcas que eram temidos pela influência social que detinham e pelo poder de mando. Representavam aqueles que dominavam o âmbito doméstico e gozavam de prestígio em âmbito público, especialmente das chefias das instituições locais de poder. Apesar de que, nesta região (caso de Malacacheta) também se tem notícias de mulheres que assumiram esta postura, sendo nominadas como matriarcas. Em proporções similares, exerceram poder e utilizaram mecanismos violentos para fazer valer suas vontades.

Isso nos faz perceber que, não se trata apenas de uma relação de exploração-dominação unilateral atribuível ao gênero masculino, mas sim, uma questão de âmbito estrutural, arraigada à cultura do território e mais profunda do que se imagina. Construções sociais baseadas em valores e princípios chanceladas e reproduzidas, inclusive, por uma das mais importantes instituições daquele período histórico: a Igreja Católica. A desconstrução dessas relações socialmente construídas possibilita a reorientação das percepções sociais quanto à ruptura das determinações dos papéis de gênero e dos direitos de cidadania atribuíveis a homens e mulheres equitativamente.

Nessa direção, o patrimonialismo traz como marcadores: a herança; o acúmulo de propriedade sem esforço; a associação de instituição a qual desempenha-se função de poder, como particular; o desempenho de interesse privado travestido de interesse público; a apropriação de estruturas coletivas como se fosse de base familiar; ou mesmo, a naturalização social destes aspectos, por conta da conformação ao longo do tempo. Ou seja, as relações cristalizadas no bojo da sociedade moderna, podem estar incorporadas à condução dos trabalhos nas instituições, principalmente, públicas locais.

O enfrentamento da violência contra meninas e mulheres neste território, encontra-se estreitamente relacionado ao contexto histórico regional, uma vez que as relações constituídas por gerações, condicionam a organização da vida em sociedade, preservando o tradicionalismo, inibindo a reação das mulheres em situação de violência que precisam buscar amparo nas instituições.

Referências: Atualização do plano de desenvolvimento territorial rural sustentável território da cidadania Vale do Mucuri – MG /GEPAF, UFVJM. 2010; Estradas da vida: terra e trabalho nas fronteiras agrícolas do Jequitinhonha e Mucuri, Minas Gerais. / Eduardo Ribeiro, 2013; Gênero, Patriarcado e Violência. / Heleieth Saffioti, 2004; Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. / Joan Scott, 1995. Imagem: comunidadesebrae.com.br.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui