Assassinatos por amor: do crime passional à legítima defesa da honra

0
850
Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda
em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

A história política do Brasil pode ser contada com base na criação e alterações dos códigos penais, assim como, a persistência do uso das teses da paixão e da honra nos tribunais do júri, como argumentos de defesa dos acusados de assassinato de mulheres. O primeiro dos códigos foi o de 1830, que abordava uma igualdade jurídica socialmente inexistente. O segundo, o código de 1890, que inaugurou a tese da irresponsabilidade criminal devido à isenção de punição a alguns acusados.

Nos termos dessa norma, estariam amparados aqueles “[…]que se achassem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime […]”. Foi durante a vigência deste código, que o argumento do crime passional teria sido construído e fortalecido. No código de 1940, em vigor nos dias atuais, a emoção ou a paixão não excluem a responsabilidade criminal. Deste modo, “[…] o crime passional, ironicamente, é nomeado pela primeira vez na legislação, e reconhecido como um delito de exceção, no código que não mais lhe reconhece a possibilidade de absolvição – mudando até de nome, pois este artigo legal passou a ser conhecido pelos juristas como homicídio privilegiado”.

O cronista João do Rio, em visita a uma penitenciária, no ano de 1905, escreveu um capítulo dedicado aos “assassinos por amor”. Sob esta narrativa, o cometimento dos crimes contra as mulheres era reconhecido como motivado pela paixão. Advogados de defesa dos acusados conseguiam, com recurso de oratória, a manipulação da tese da “privação de sentidos” descrita no código de 1890. Essa manipulação ocorria […] numa época em que parecia estar no auge a absolvição dos criminosos passionais”: homens de bem, que eram maridos, noivos ou amantes de bom comportamento, que assassinavam suas companheiras por ciúme, infidelidade ou suspeita de traição.

No início do século XX, a categoria de “crime passional” tomou lastro no âmbito jurídico do país, transformando um homicídio que poderia ser como um outro qualquer, num espetáculo protagonizado pelos advogados da época, tanto em sede de tribunal, por meio de suas performances ou disputados torneios de oratória na cena do júri, quanto em suas defesas para formação da opinião pública em jornais e publicações jurídicas.

Por volta das duas primeiras décadas desse século, duas importantes referências do discurso sobre os crimes passionais influenciariam uma geração de advogados e promotores. Foram eles, Evaristo de Moraes, renomado advogado, membro da comissão que revisou o código penal de 1937; e Roberto Lyra, promotor de similar quilate, membro da comissão revisora do projeto que se transformaria no Código Penal de 1940. Ambos, nas disputas do tribunal do júri do Rio de Janeiro.

No Brasil, médicos, psicólogos e juristas comungavam argumentos que justificavam os assassinatos de mulheres em razão da “paixão”, o que conduzia para a absolvição dos acusados. Nesse mesmo período da história, especialmente na França, existia um movimento distinto. Médicos, sob a tese de que existia uma privação de sentidos e dada perturbação no momento do crime, tentavam deslocar os criminosos da tutela da Lei para a tutela da medicina. Como a realidade brasileira no que se refere aos centros de internação não correspondia à sustentação desse argumento, a absolvição era o caminho. Associados aos crimes contra as mulheres, alguns homens forjavam a tentativa de tirar a própria vida para que fossem compreendidos como desequilibrados ou loucos.

O jurista Léon Rabinowicz, de Genebra, publicou um livro na década de 1930 – O Crime Passional, 1931 – desconstruindo a tese majoritária a respeito dos crimes contra as mulheres, apontando a literatura como cúmplice dos passionais, o que levou a tese da paixão a cair em descrédito e perder força entre juristas, inclusive do Brasil. Após o enfraquecimento desse argumento, devido sua ridicularização, o “crime por amor”, associado à paixão, transforma- -se em “crime por honra”, atribuindo às situações de assassinato de mulheres, nova roupagem. Nesta fase, foi que Evaristo de Moraes inaugurou uma nova tese: a legítima defesa da honra.

Embora também não esteja descrita no código penal brasileiro, a aceitação do argumento da legítima defesa da honra nos tribunais, deveu-se ao entendimento de que se tratava de figura jurídica associada aos “nossos usos e costumes”.

Na década de 1970, uma série de assassinatos ganhou destaque nos jornais da época, especialmente pelo clamor dos movimentos de mulheres e feminista que protestavam contra as absolvições de assassinos nos tribunais, que permaneciam sustentando e reconhecendo a tese da legítima defesa da honra.

O caso Ângela Diniz, morta a tiros em 1976 pelo namorado, Doca Street, é um dos mais lembrados até hoje. Aquela seria a década do início das mudanças de percepção social e dos tribunais sobre a condição de privilégio de alguns homens, de matar sem punição. (Referência: Corrêa, Mariza. Os crimes da paixão. Editora Brasiliense, Rio de Janeiro, 1981; imagens: https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos; https://www.em.com.br/app/ noticia/gerais/2020/11/04/ interna_gerais,1201113/ quem-ama-nao-mata-repudia-sentenca-de-justica-de- -santa-catarina.shtml).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui